sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo que não se diz mais: meu Deus
Tempo de absoluta depuração
Tempo em que não se diz mais: meu amor
Porque o amor resultou inútil
E os olhos não choram
E as mãos tecem apenas o rude trabalho
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandescem enormes
És todo certeza, já não sabes sofrer
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança:
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue,
e nem todos se libertaram ainda
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer
Chegou um tempo em que não adianta morrer
Chegou o tempo em que a vida é uma ordem
A vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond de Andrade)