CAPÍTULO I
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Quando parou à minha porta o enorme caminhão
fechado, com soldados de fuzil na mão, e um deles me perguntou: “é aqui?"
- eu suspirei e disse que sim. Já fui preso várias vezes; não há de ser por
mais uma que perderei minha natural dignidade.
Tratei de apanhar a escova de dentes, a pequena,
frívola e patética escova de dentes que anda sempre na bolsa das senhoras
desonestas e no bolso dos políticos perseguidos. E dispondo também de dois
maços de cigarro, esperei impávido, embora chateado. Só então notei que o
caminhão era do Ministério da Fazenda. Funcionários desembarcavam fardos, e
começaram a colocá-los na saleta da frente. Isso não me agradou. Indiquei-lhes
a entrada de serviço e ordenei que colocassem os fardos no quartinho da
empregada. É, com vergonha o digo, um quartinho minúsculo onde uma pessoa não
pode respirar com muita força que esgota completamente o ar. Em pouco tempo ele
estava literalmente cheio de pacotes. Um suboficial aproximou-se de mim
respeitosamente:
- Está entregue? Respondi secamente: - Pode
retirar-se. O caminhão partiu. Voltei então ao livro que começara a ler, e que
era um desses romances introspectivos tão profundos que a gente dorme e cai num
estado de catalepsia; de maneira que esqueci o incidente.
Só pela noite, tendo chegado de uma fila onde se
metera de madrugada, a empregada reclamou, e veio me tomar satisfações, como
costumam fazer as empregadas modernas. Respondi-lhe que aquilo devia ser alguma
ideia de minha mulher, que de vez em quando tem uma. Não desejo criticá-la; é
uma senhora que tem seus encantos, mas depois de 25 anos de casado estou
imunizado contra qualquer crise de desespero.
Se me aparecer em casa, embrulhado em papel
colorido, um faquir vivo com uma trombeta na mão e uma lagartixa pendurada em
cada orelha pela cauda, eu o recebo de boa cara, pois imagino que deve ser
alguma ideia de minha mulher, e ela sem falta me provará que aquilo é excelente
para espantar o homem que vem cobrar a prestação do sofá; que, com o dinheiro
assim economizado, poderemos comprar quem sabe uma piteira de marfim, igual
àquela que lhe presenteei quando éramos noivos e que ela perdeu num piquenique.
Ela é assim, minha mulher, prática e romântica;
acostumei-me; e, afinal de contas, não tenho outra.
Quando descobri que os fardos continham notas de
mil cruzeiros, logo percebi que houvera um engano. Que fazer? O governo anda
confuso com muitos problemas e, sempre que não sabe o que fazer, faz dinheiro,
que afinal de contas é uma coisa de que todo mundo gosta. Os oposicionistas
sistemáticos ficam irritados e passam a metade do dia falando em inflação,
dizendo que há dinheiro demais; e a outra metade do dia passa cavando o
dinheiro, com certeza porque acham que é de menos que o possuem. Pensei em
procurar o ministro da Fazenda e contar-lhe a história; mas com toda certeza o
ministro não me receberia porque os ministros estão sempre muito ocupados em
receber pessoas, e por causa disso jamais recebem quem quer que seja.
A mulher, chegando em casa, opinou que o melhor era
eu ir à Polícia; mas não creio que fique bem a um homem honrado ir à Polícia
por causa de negócios de dinheiro. Acabei, enfim, me conformando com o fato.
“Pobre sim, honrado nunca” - dizia meu padrinho, que tinha esse lema e graças a
ele morreu rico e foi enterrado com as maiores honrarias, com direito a
prefeito e bispo. Lembrei-me disso, e também de que meu lar é humilde, como a
maior parte dos lares do Brasil, e desde que casamos minha mulher está sempre
querendo comprar umas coisas que jamais compramos. Nunca o fizemos por falta de
dinheiro - pois digam o que disserem sobre inflação, em minha casa sempre
reinou uma grande deflação. Só os sonhos inflavam dentro de nós; mas
ultimamente, para falar a verdade, até eles andavam murchos. Sonhar cansa, como
qualquer outra coisa; e com a velhice nós, pobres, já que não podemos
economizar dinheiro, passamos a economizar ambições.
Já que eu estava com dinheiro, o papel era comprar
coisas. Coisas as, tudo artigo estrangeiro, coisas de metal, luzidias,
práticas, elegantes, elétricas, tipo de pós-guerra. Lembrei-me do tempo em que
eu passava os domingos a ler o Jornal Brasil e a vontade que tinha de fazer mil
e um negócios ali anunciados. Resolvi esperar até o domingo e comprar o jornal
nesse dia, estava pululando de ofertas maravilhosas. Foi o que fiz; esperei o
domingo.
Continua ...
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