sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Desvelamento

Ama, em mim, apenas
o que é de ti reflexo:
sou somente espelho
do que vivo em versos.
como espelho sou,
os sinais estão trocados:
te amo onde me vejo,
te vejo se me regalo.
perdi meu coração
num desvelamento da alma,
na clareira ali aberta...,
só a lascívia se instala.
Fred Matos

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Feitiço


Dos lábios discorrem feitiços, espargem orações.
Crescem-me no peito os dons, a imagem, os olhos
E as mãos em cerimônia anunciam destinos.
O oceano bravio eleva-se em vagas!
Inunda-me a pele erguida em marés num êxtase mágico.
Divido-me em duas: alma e ser flutuante.
Converto-me em magia, inominada, abstrata.
Torno-me cativa dos meus próprios sortilégios...
Flui-me a emoção e a garganta entorpecida silencia.
No fundo insurgem encantamentos,
Os deuses içam e com o vento fecundo,
Evoco a tua aparição, sensações longínquas, remotas..
Deságua-me a ilusão dos teus azuis, essências de ti...
Numa dança mágica de sentires sobre o mar do meu coração,
A tua sombra, quimera minha, vagueia lenta e escurece-me o sol dos dias.
No ventre umedecido, deita-me, vagarosamente, a lua, o amor, o astral...
E depois,
desvanece pouco-a-pouco a tua forma.
Perde-se em mim...

Cláudia Perotti


terça-feira, 26 de agosto de 2008

Perdidos e achados num convés

Así será por Maria Eugenia Sampaoli

Hei fantasma não quero mais brincar
Que graça tem brincar de fantasma?
Vento morno, esconde-esconde,
Quando minha vontade é de voar
Voar sete saias de alma
E sentir o coração disparar

Larguei esse baú no fundo das águas
Cansei desse baile de máscaras,
Dessa música de fundo, fundo de mar,
Das mil e uma cartas sem respostas,
E desse seu, apenas, conjugar de verbos
levo na mão a palma
-metade de um mapa-
Carrego o vento nos cabelos,
O olhar enigmático das fadas,
E pra semear, o amor entre os dedos

Trago as asas de um sonho que brotou nas minhas costas,
As flores de março, quadris da floresta,
Cravejado no coração da mata,
E do acaso as longas pernas

Abigail Brasil



segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Beleza

Dancing por Edwin Voûte

I
Amor,
és todo belo,
tens forma idolatrada,
mas não animes de teu
corpo a escultura
com o fogo de uma alma
apaixonada...

II
Tens
a forma de
todo o ideal pagão e ufano
porém, a forma não deve ser toda a formosura;
não é divino em ti... o que não for
humano...

III
Minha
alma que dos sentidos se avassala,
à ti se rende, se entrega
em delírio insano..
Este amor tresloucado que em mim
estala,
IV
viverá
por si mesmo,
por tua força e beleza...
Não mostres pois,
de tua alma a baixeza,
eu amarei pelos dois, me beija e
te cala...


Maria Antonieta R. Mattos


sábado, 23 de agosto de 2008

Sfot Poc - Luis Fernando Veríssimo

Chamava-se Odacir e desde pequeno, desde que começara a falar, demonstrara uma estranha peculiaridade. Odacir falava como se escreve. Sua primeira palavra não foi apenas "Gugu". Foi:
- Gu, hífen, gu...
Os pais se entreolharam, atônitos. O menino era um fenômeno. O pediatra não pôde explicar o que era aquilo. Apenas levantou uma dúvida:
- Não tenho certeza que "gugu" se escreve com hífen. Acho que é uma palavra só, como todas as expressões desse tipo. "Dadá", etc.
- Da, hífen, dá - disse o bebê, como que para liquidar com todas as dúvidas.
Um dia, a mãe veio correndo. Ouvira, do berço, o Odacir chamando:
- Mama sfot poc.
E, quando ela chegou perto:
- Mama sfotoim poc.
Só depois de muito tempo os pais se deram conta. "Sfot Poc" era ponto de exclamação e "sfotoim poc", ponto de interrogação.
Na escola, tentaram corrigir o menino.
- Odacir!
- Presente sfot poc.
- Vá para a sala da diretora!
- Mas o que foi que eu fiz sfotoim poc.
Com o tempo e as leituras, Odacir foi enriquecendo seu repertório de sons. Quando citava um trecho literário, começava e terminava a citação com "spt, spt". Eram as aspas. Aliás, não dizia nada sem antes prefaciar um "zit". Era o travessão. Foi para a sua primeira namorada que ele disse certa vez, maravilhado com a própria descoberta:
- Zit Marilda plic (vírgula) você já se deu conta que a gente sempre fala diálogo sfotoim poc.
- O quê?
- Zit nós sfot poc. Tudo que a gente diz é diálogo sfot poc.
- Olhe, Odacir. Você tem que parar de falar desse jeito. Eu gosto de você, mas o pessoal fala que você é meio biruta.
- Zit spt spt biruta spt spt sfotoim poc.
- Viu só? Você não pára de fazer esse ruídos. E ainda por cima, quando diz "sfotoim", cospe no meu olho.
O namoro acabou. Odacir aceitou o fato filosoficamente, aproveitando para citar o poeta.
- Zit spt spt. Que seja eterno enquanto dure poc poc poc spt spt.
Poc poc poc eram as reticências.
Odacir era fascinado por palavras. Tornou-se o orador da turma e até hoje o seu discurso de formatura (em Letras) é lembrado na faculdade. Como os colegas conheciam os hábitos de Odacir mas os pais e os convidados não, cada novo som do Odacir era interpretado, aos cochichos, na platéia:
- Zit meus senhores e minhas senhoras poc poc.
- Poc, poc? - Dois pontos.
- Que rapaz estranho...
- A senhora ainda não viu nada...
Quando lia um texto mais extenso, Odacir acompanhava a leitura com o corpo. As pessoas viam, literalmente, o Odacir mudar de parágrafo.
- Mas ele parece que está diminuindo de tamanho!
- Não, não. É que a cada novo parágrafo ele se abaixa um pouco.
Quando chegava ao fim de uma folha, Odacir estava quase no chão. Levantava-se para começar a ler a folha seguinte.
- Colegas sfot poc Mestres sfot poc Pais sfot poc. No limiar de uma era de grandes transformações sociais plic o que nós plic formando em Letras plic podemos oferecer ao mundo sfotoim poc.
A grande realização de Odacir foi o trema. Para interpretar o trema, Odacir não queria usar poc, poc, que podia ser confundido com dois pontos. Poc plic era ponto e vírgula. Um spt só era apóstrofe. Como seria trema? Odacir inventou um estalo de língua, algo como tlc, tlc. Difícil de fazer e até perigoso. Ainda bem que tinha poucas oportunidades de usar o trema.
Odacir, apesar de formado em Letras, acabou indo trabalhar no escritório de contabilidade do pai. Levava uma vida normal. Lia muito e sua conversa era entrecortada de spt, spts, citações dos seus autores favoritos. Mesmo assim casou - na cerimônia, quando Odacir disse "Aceito sfot poc", o padre foi visto discretamente enxugando um olho - e teve um filho. E qual não foi o seu horror ao ouvir o primeiro som produzido pelo recém-nascido:
- Zzzwwwwuauwwwuauzzz!
- Zit o que é isso sfotoim e sfot poc?
- Parece - disse a mulher, atônita - o som de uma guitarra elétrica.
O filho de Odacir, desde o berço, fazia a sua própria trilha sonora. Para a tristeza do pai, produzia até efeitos especiais, como câmara de eco. Cresceu sem dizer uma palavra. Até hoje anda por dentro de casa reverberando como um sintetizador eletrônico. É normal e feliz, mas o único som mais ou menos inteligível - pelo menos para seus pais - que faz é "tump tump", imitando o contrabaixo elétrico.
- Zit meu filho poc poc poc. Meu próprio filho poc poc poc. - diz Odacir.
Poc, poc, poc.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Caminhos

Nenhuma religião ou filosofia é a melhor. Porque não é o caminho que verdadeiramente importa - é o caminhante. Todos os caminhos que há são apenas a realidade brincando de se explicar para nós. Não fosse esse espírito lúdico, que transforma a realidade, essa coisa infinita e assombrosamente complexa, em fascinantes caminhos para se percorrer, nós pobres humanos não teríamos como de fato acessá-la.

Portanto, todos os caminhos são válidos pois todos são a realidade se experimentando para a limitada e esforçada compreensão humana. Evidente que é impossível percorrer todos. Mas podemos, durante a vida, escolher alguns, caminhar por eles com alegria e entender um pouco mais sobre a realidade. Há, porém, bem à entrada de cada um deles, um aviso aos navegantes que, embora de séria importância, a maioria não lê, empolgada com as maravilhas da via recém-escolhida. O aviso diz: “Para o caminho não criar lodo, não perca a noção do todo.”

Caminhos são sedutores porque cremos que neles está a verdade e ela nos libertará. Sim, a verdade liberta. Ela, porém, não cabe no caminho: o caminho é que faz parte da verdade. Quando perde isso de vista, o caminhante se entorpece e fica cego. Em seu exclusivismo, passa a crer que somente seu caminho é verdadeiro e os demais são ilusão. Especializa-se cada vez mais em suas paisagens e esquece que cria lodo a água que não corre. Paisagens são bonitas, sim, descansam a vista... mas se paramos muito tempo para admirar, acabamos nos tornando parte da paisagem e assim o caminho perde seu maior sentido: o movimento.

Então experimentemos os caminhos, com entusiasmo, extraindo deles o máximo que pudermos. Escolhamos aqueles que ecoam alma adentro e nos fazem tremer, aqueles que fazem a vontade de viver correr pelas veias. Temos uma vida inteira para experimentá-los. Lembremos, porém, que os caminhos cruzam com outros e é justamente nesses cruzamentos que a verdade brilha mais forte.

Por isso, quando você encontrar alguém que descobriu o único de todos os caminhos que leva à verdade, sorria e seja compreensivo. Esse alguém está trilhando seu caminho intensamente, com entusiasmo tanto que não tem tempo para erguer-se um pouco acima dele e constatar que, na verdade, todos os caminhos são um único caminho que se experimenta de todas as formas.

A verdade liberta, sim, mas apenas se você conseguir enxergá-la onde ela sempre esteve: em tudo.

(por Ricardo Kelmer)

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Realização da vida

Não me peças que cante,
pois ando longe,
pois ando agora
muito esquecida.

Vou mirando no bosque
o arroio claro
e a provisória
flor escondida.

E procuro minha alma
e o corpo, mesmo,
e a voz outrora
em mim sentida.

E me vejo somente
pequena sombra
sem tempo e nome,
nisto perdida,
- nisto que se buscara
pelas estrelas,
com febre e lágrimas,
e que era a vida.
(Cecília Meireles)

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Cicatrizes

Há alguns anos, em um dia quente de verão, um pequeno menino decidiu ir nadar no lago que havia atrás de sua casa. Na pressa de mergulhar na água fresca, foi correndo e deixando para trás os sapatos, as meias e a camisa. Vôou para a água, não percebendo que enquanto nadava para o meio do lago, um jacaré estava deixando a margem e entrando na água. Sua mãe, em casa, olhava pela janela enquanto os dois estavam cada vez mais perto um do outro. Com medo absoluto, correu para o lago, gritando para seu filho o mais alto quanto conseguia.

Ouvindo sua voz, o pequeno se alarmou, deu um giro e começou a nadar de volta ao encontro de sua mãe. Mas era tarde. Assim que a alcançou, o jacaré também o alcançou. A mãe agarrou seu menino pelos braços enquanto o jacaré agarrou seus pés. Começou um cabo-de-guerra incrível entre os dois. O jacaré era muito mais forte do que a mãe, mas a mãe era por demais apaixonada para deixá-lo ir.
Um fazendeiro que passava por perto, ouviu os gritos, pegou uma arma e disparou no jacaré. De forma impressionante, após semanas e semanas no hospital, o pequeno menino sobreviveu. Seus pés extremamente machucados pelo ataque do animal, e, em seus braços, os riscos profundos onde as unhas de sua mãe estiveram cravadas no esforço sobre o filho que ela amava.
Um repórter de jornal que entrevistou o menino após o trauma, perguntou-lhe se podia mostrar suas cicatrizes. O menino levantou seus pés. E então, com óbvio orgulho, disse ao repórter - Mas olhe em meus braços. Eu tenho grandes cicatrizes em meus braços também. Eu as tenho porque minha mãe não deixou eu ir.
Nós também temos muitas cicatrizes. Não, não a de um jacaré, ou qualquer coisa assim tão dramática. Mas as cicatrizes de um passado doloroso, algumas daquelas cicatrizes são feias e causam-nos profunda dor. Mas, algumas feridas, meu amigo, são porque DEUS se recusou a nos deixar ir. E enquanto você se esforçava, Ele estava lhe segurando.
Se hoje o momento é difícil, talvez o que está te causando dor seja Deus cravando-lhe suas unhas para não te deixar ir, lembre-se do jacaré e muito mais Daquele que mesmo em meio a tantas lutas nunca vai te abandonar e certamente vai fazer o que for necessário para não te perder, ainda que para isso seja preciso deixar-lhe cicatrizes.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Magia

Evoco teu nome
ao som das ondas
e a voz do mar...
Dentro do azul profundo
surge uma nau solitária
vestindo o manto escuro da noite.
Chega, ondeando os véus,
as nuvens e clarões.
Suas asas, benditas velas,
imponentes e majestosas,
calam as encostas,
aproximam os mistérios
e corações.
Oh! Caravela do desejo,
destino meu,
arranha-me a alma
com tua grandeza.
Sagra-me o corpo
com teus humores,
teus beijos e teu amor.
Cerra-me os olhos
na tua alegria,
no teu bem e na euforia.
Veste-me com tua pele,
tuas células,
teu calor e fique assim,
agora e sempre,
totalmente
debruçado em mim...

sábado, 16 de agosto de 2008

Crônica da loucura - Luis Fernando Veríssimo

O melhor da Terapia é ficar observando os meus colegas loucos. Existem dois tipos de loucos. O louco propriamente dito e o que cuida do louco: o analista, o terapeuta, o psicólogo e o psiquiatra. Sim, somente um louco pode se dispor a ouvir a loucura de seis ou sete outros loucos todos os dias, meses, anos. Se não era louco, ficou. Durante quarenta anos, passei longe deles. Pronto, acabei diante de um louco, contando as minhas loucuras acumuladas.
Confesso, como louco confesso, que estou adorando estar louco semanal. O melhor da terapia é chegar antes, alguns minutos e ficar observando os meus colegas loucos na sala de espera. Onde faço a minha terapia é uma casa grande com oito loucos analistas. Portanto, a sala de espera sempre tem três ou quatro ali, ansiosos, pensando na loucura que vão dizer dali a pouco. Ninguém olha para ninguém. O silencio é uma loucura. E eu, como escritor, adoro observar pessoas, imaginar os nomes, a profissão, quantos filhos têm, se são rotarianos ou leoninos, corintianos ou palmeirenses. Acho que todo escritor gosta desse brinquedo, no mínimo, criativo. E a sala de espera de um "consultório médico", como diz a atendente absolutamente normal (apenas uma pessoa normal lê tanto Paulo Coelho como ela), é um prato cheio para um louco escritor como eu.
Senão, vejamos: Na última quarta-feira, estávamos: (1) eu, (2) um crioulinho muito bem vestido, (3) um senhor de uns cinqüenta anos e (4) uma velha gorda. Comecei, é claro, imediatamente a imaginar qual seria o problema de cada um deles.
Não foi difícil, porque eu já partia do princípio que todos eram loucos, como eu. Senão, não estariam ali, tão cabisbaixos e ensimesmados. (2) O pretinho, por exemplo. Claro que a cor, num país racista como o nosso, deve ter contribuído muito para levá-lo até aquela poltrona de vime. Deve gostar de uma branca, e os pais dela não aprovam ou conseguiu entrar como sócio do "Harmonia do Samba"? Notei que o tênis estava um pouco velho. Problema de ascensão social, com certeza. O olhar dele era triste, cansado. Comecei a ficar com pena dele. Depois notei que ele trazia uma mala. Podia ser o corpo da namorada esquartejada lá dentro. Talvez apenas a cabeça. Devia ser um assassino, ou suicida, no mínimo. Podia ter também uma arma lá dentro. Podia ser perigoso. Afastei-me um pouco dele no sofá. Ele dava olhadas furtivas para dentro da mala assassina.
(3 ) E o senhor de terno preto, gravata, meias e sapatos também pretos? Como ele estava sofrendo, coitado. Ele disfarçava, mas notei que tinha um pequeno tique no olho esquerdo. Corno, na certa. E manso. Corno manso sempre tem tiques. Já notaram? Observo as mãos. Roía as unhas. Insegurança total, medo de viver. Filho drogado? Bem provável. Como era infeliz esse meu personagem. Uma hora tirou o lenço e eu já estava esperando as lágrimas quando ele assoou o nariz violentamente, interrompendo o Paulo Coelho da outra. Faltava um botão na camisa. Claro, abandonado pela esposa. Devia morar num flat, pagar caro, devia ter dívidas astronômicas. Homossexual? Acho que não. Ninguém beijaria um homem com um bigode daqueles. Tingido.
(4) Mas a melhor, a mais doida, era a louca gorda e baixinha. Que bunda imensa. Como sofria, meu Deus. Bastava olhar no rosto dela. Não devia fazer amor há mais de trinta anos. Será que se masturbaria? Será que era esse o problema dela? Uma velha masturbadora? Não! Tirou um terço da bolsa e começou a rezar. Meu Deus, o caso é mais grave do que eu pensava. Estava no quinto cigarro em dez minutos. Tensa. Coitada. O que deve ser dos filhos dela? Acho que os filhos não comem a macarronada dela há dezenas e dezenas de domingos. Tinha cara também de quem mentia para o analista. Minha mãe rezaria uma Salve-Rainha por ela, se a conhecesse. Acabou o meu tempo.
Tenho que ir conversar com o meu psicanalista. Conto para ele a minha "viagem" na sala de espera. Ele ri, ri muito, o meu psicanalista e diz: "(2 ) O Ditinho é o nosso office-boy. (3) O de terno preto é representante de um laboratório multinacional de remédios lá no Ipiranga e passa aqui uma vez por mês com as novidades. 4) E a gordinha é a Dona Dirce, a minha mãe. E (1) você, não vai ter alta tão cedo..."

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Há um tempo...


Há um tempo em que é preciso
abandonar as roupas usadas,
que já tem a forma do nosso corpo,
e esquecer os nossos caminhos,
que nos levam sempre aos mesmos lugares.
É o tempo da travessia:
e, se não ousarmos fazê-la,
teremos ficado, para sempre,
à margem de nós mesmos.
(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Realidade surreal

Ela era vista como uma louca esquizofrênica aos olhos dos normais. Ela enxergava a sua própria realidade, e era isso que a fazia tão real quanto os demais. Ela gostava de flutuar nas nuvens aconchegantes de algodão-doce levemente coloridas com um toque de giz de cera de cores espetaculares, feitos cautelosamente por abelhas com nariz vermelho de palhaço. Sempre quando adormecia em cima das tão deliciosas nuvens, acordava aos berros de sua mãe mandando ela descer imediatamente de cima do seu novo guarda-roupa de marfim, e que caso contrário, ela iria cair e se machucar feio. Ela acordava assustada e ofegante, não conseguia entender como a sua mãe tinha tanto medo de que ela se machucasse, mesmo estando tão protegida por belos dentes-de-leão tão macios quanto amaciante com cheiro de lavanda.

"- Estou bem, mamãe. As minhas amigas formigas me levam cuidadosamente para o solo térreo sã e salva. Não se preocupe. Por acaso, você não quer observar o pôr-dos-girassóis ao meu lado?"

Ela sempre pedia isso à sua mãe, era um sonho de infância que nunca fora realizado. E a cada tentativa de convencer a sua mãe a subir em suas tão doces, fofas e inofensivas nuvens para admirar aquelas luzes reluzentes que mais pareciam lindos e coloridos fogos de artifício - mas claro, feitos impecavelmente pela mãe natureza; e não por toxinas fedorentas - ela só ganhava uma mãe cabisbaixa e melancólica.

Sua teoria, era que sua mãe deveria ter algum trauma de infância assistindo a dança das luzes fogosas e reluzentes dos fabulosos e maravilhosos girassóis. Por causa disso, não insistia tanto - para a felicidade de sua mãe -.

Sua mãe sempre dizia a ela que o mundo em que ela vivia, era um mundo inventado, um mundo de faz-de-conta. E que ela deveria voltar a realidade imediatamente. No entanto, a garota esquizofrênica só conseguia pensar nos raios coloridos, nas margaridas cantantes e no rio de suco de amora. Ela era muito feliz em seu mundo irreal, e estava sempre satisfeita com a doce vida em que vivia. Se ela era feliz, sorridente, cheia de amigos e de alegria constante, porque raios ela deveria voltar para a realidade cinzenta, poluída e barulhenta a qual ela pertencia? ou melhor, não pertencia.

Apenas por que a sociedade faz de todos uns robôs idênticos, manipulados e alienados pela mídia escrota a qual seguimos? Por que ser diferente é ser um louco no mundo real? Ela era superior à todas essas balelas asquerosas. Ela era esperta e realmente muito sortuda. Vivia calmamente e sorridente em suas *supostas* utopias hereditárias. E quer saber do que mais? Ela é o que ela nasceu, e é assim que ela pretende ir levando e rumando a sua *falsa* e extraordinária vida.

(por Eduarda Metzker)

terça-feira, 5 de agosto de 2008

ES - PE - RAN - ÇA

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano

Vive uma louca chamada Esperança

E ela pensa que quando todas as sirenas

Todas as buzinas

Todos os reco-recos tocarem

Atira-se

E

— ó delicioso vôo!

Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,

Outra vez criança…

E em torno dela indagará o povo:

— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?

E ela lhes dirá

(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)

Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:

— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA…

(Mário Quintana)

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Convite

Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério
A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

(Lya Luft)


sábado, 2 de agosto de 2008

A arte é uma flor...


"A arte é uma flor nascida
no caminho da nossa vida,
e que se desenvolve para suavizá-la."
(Arthur Schopenhauer)


sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo que não se diz mais: meu Deus
Tempo de absoluta depuração
Tempo em que não se diz mais: meu amor
Porque o amor resultou inútil
E os olhos não choram
E as mãos tecem apenas o rude trabalho
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandescem enormes
És todo certeza, já não sabes sofrer
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança:
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue,
e nem todos se libertaram ainda
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer
Chegou um tempo em que não adianta morrer
Chegou o tempo em que a vida é uma ordem
A vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond de Andrade)