quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A redução do pensamento à palavra


O homem parecia ter desapontadamente perdido o sentido do que queria anotar. E hesitava, mordia a ponta do lápis como um lavrador embaraçado por ter que transformar o crescimento do trigo em algarismos. De novo revirou o lápis, duvidava e de novo duvidava, com um respeito inesperado pela palavra escrita. Parecia-lhe que aquilo que lançasse no papel ficaria definitivo, ele não teve o desplante de rabiscar a primeira palavra. Tinha a impressão defensiva de que, mal escrevesse a primeira, e seria tarde demais. Tão desleal era a potência da mais simples palavra sobre o mais vasto dos pensamentos. Na realidade o pensamento daquele homem era apenas vasto, o que não o tornava muito utilizável. No entanto parece que ele sentia uma curiosa repulsa em concretizá-lo, e até um pouco ofendido como se lhe fizessem proposta dúbia...

Clarice Lispector in A maçã no escuro

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Apesar dos nossos defeitos


"Apesar dos nossos defeitos,
precisamos enxergar que somos pérolas únicas no
teatro da vida e entender que não existem pessoas
de sucesso e pessoas fracassadas.
O que existem são pessoas que lutam pelos
seus sonhos ou desistem deles."
Augusto Cury

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro pra ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta
Estudar é uma coisa que está indistinta,
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Se quando, em vez de criar, seca.
O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa


sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Assovio

Ninguém abra a sua porta
para ver o que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu.
Ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
se o que houve já se perdeu.
Vou pelo braço da noite,
levando tudo que é meu:
- a dor que os homens me deram,
e a canção que Deus me deu.
Cecília Meireles

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Arte=beleza: O início

Assim como o camponês cria a arte na natureza
O artista alimenta a alma com os frutos da beleza
O pão alimenta o corpo, a arte alimenta os sentimentos
Um vem dos prados da terra e o outro, dos pensamentos
E se não pode nos faltar, a comida, o alimento
A arte é imprescindível, na vida, a cada momento
Venha em palavras doces, em sons, formas ou cores
A arte é o calmante, que apazigua as nossas dores
A beleza é um lugar, que estamos a buscar
Porque lá estão as chaves que vão nos libertar
A beleza é divina, é conquista, fascinação
Beleza é arte, a arte é evolução
Que expressamos calmamente
Como a lapidação de um diamante
Realizando intensamente
Os sonhos mais delirantes
Enigmaticamente, moldando a certeza:
A manifestação da arte, todos tendem a seguir
Pois está na natureza, a maior expressão da beleza
A perfeição concretizada, a que sonhamos atingir...

Autor desconhecido

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Anjos

"Não há remédio que cure o que a felicidade não cura"

27 de setembro. A cidade toma tons coloridos na paisagem e nas almas de seus habitantes. A alegria pode ser sentida pairando no ar, quebrando a aspereza e insensibilidade dos dias comuns. Nas ruas, as crianças passeiam, ostentando os seus chocolates e balas, cantarolando cirandas infantis. Elas passam abrindo sorrisos deliciosos e, entre brincadeiras, degustando a doçura da vida. Sua alegria contagiante transformava as casas e prédios num imenso arco-íris de luz, retirando o fel dos corações até daqueles que perderam o seu encanto com a impiedosa cavalgada do tempo.

No centro da monumental e antiga igreja, o animado padre cuidava dos últimos detalhes da decoração. As fitas de cetim em cores fortes davam movimento à escuridão e as flores perfumadas contrastavam com a seriedade do templo. Ao lado direito do altar, a meninada se assanhava. E como um grande batalhão, um a um dos integrantes do coral ia tomando a sua posição, repreendendo o nervosismo inevitável que antecedia a cantoria. Em pouco tempo, os fiéis já ocupavam os bancos da "Casa de Deus": a missa daquela quinta-feira seria muito especial. O coral cantava a todo o vapor os cânticos religiosos, alternando entre graves e agudos de infinita beleza, que logo ecoavam por toda a vizinhança.

A sábia senhora negra que a tudo assistia reparava nas crianças do coro: bochechas avermelhadas, cabelos e pele claros. Silenciosamente, ela engolia mais uma vez o desaforo que maltratava o seu coração. Curioso era, que a mesma igreja que pregava a igualdade entre os homens, constituía um coral unanimente ariano...

A magnitude das preces ia, minuto a minuto, esgotando-se. As atenções e os olhares começavam a se dispersar. A voz do pároco tornara-se cansativa e a missa começava a perder seu propósito. As pessoas alienavam-se da reza e mergulhavam suas cabeças em seus problemas pessoais; e o padre, agora, pronunciava palavras sem sentido.

Mas é 27 de setembro, é o dia de São Cosme e São Damião. Os santos das crianças, a única esperança para muitas. E em seu coral, ninguém era esquecido... Esse dia não poderia ser apenas mais um.

Dos bancos, as crianças olhavam encantadas os querubins pintados na parte superior da igreja, que brincavam no céu artificial. Os contornos barrocos enchiam de beleza o cenário dando traços generosos aos anjos que ganhavam vida. E tal como os meninos, eles quebravam a impaciência e indiferença das pessoas. No dia de São Cosme e São Damião, os anjos pareciam aproximar-se mais dos homens, a todos que os louvavam e pediam a sua proteção.

Contudo, outros anjos que habitam entre nós são esquecidos e sofrem com o descaso. Anjos, como o pequeno Ângelo, o subnutrido e mísero menino das periferias. Para ele, nem os doces de São Cosme e Damião tiravam a amargura da vida.

Desde que vira a mãe definhando lentamente, presa a uma cama pobre até a morte, resolveu não mais soltar a sua voz. E realmente, nunca mais pronunciou palavra alguma. À noite, amontoava-se aos quatro irmãos desencaminhados, no barraco de proporções ínfimas, localizado ao lado de um córrego que de tempos em tempos subia e fazia o anjo da morte baixar na Terra.

A luta pela sobrevivência era sua missão e a cada dia que se passava ele se deparava com monstros cada vez maiores. O silencioso menino carregava todas as manhãs a desgastada e suja caixa de engraxate, perambulando pelo centro da cidade, perto da antiga igreja. Por ali, os homens de negócio transitavam sempre, com seus ternos imponentes e sorrisos de aço. E lá ele ficava, esperando que algum deles se apiedasse de sua dor e deixasse que ele prestasse o simbólico serviço. Com certeza, eles cederiam uma migalha do pão velho de suas padarias.

Certa vez, Ângelo resolveu entrar na Catedral do centro da cidade e, admirando os querubins do teto, recebeu um presente dos céus. Uma linda mulher surgiu em frente a seus olhos e lhe ofereceu um ursinho de pelúcia, amarelo, perfumado, puro. Foi no mesmo dia em que o coral cantou como jamais se viu.

Agora, a vida do menino se corava. Uma felicidade gigantesca visitava seu coração depois de muito tempo de ausência. Ângelo esqueceu da dureza de sua caminhada e de volta ao pobre barraco, dormiu celestialmente, repleto da alegria que o singelo presente lhe dava.

Naquela noite, a magia se fazia presente. No mundo da fantasia, os querubins visitavam Ângelo, que com eles brincava e por eles era abençoado. Ele também podia voar junto aos anjos, passeando pelos campos de seus sonhos. A floresta virgem o chamava e junto com os querubins, ele se banhava em uma linda cachoeira, sorridente. Com seus frágeis membros, espalhava água para todos os lados, esbanjando a sua meninice, que um dia lhe fora roubada. Ali ele se sentia bem. O sofrimento morrera e a pobreza não existia.

Mas o nascer do sol põe fim à festa. O grito estridente e desesperado de um galo traz Ângelo de volta à realidade, arrancando-lhe da única coisa que a maldade e negligência dos homens não conseguiam lhe tirar: os sonhos. O cheiro de enxofre que a miséria produzia invadia os poros do nosso anjo. Um suspiro refletia a estrondosa insatisfação de ter voltado de sua viagem.

O sol da manhã já estava forte. Ângelo passa a mão na severa e inseparável caixa, olha para o seu ursinho, angelicalmente, e parte novamente para o seu martírio, no centro da cidade. Saía, entretanto, motivado. Porque ele sabia que a noite, como um manto, cairia sobre a frialdade de seus dias, e logo os anjos voltariam a estar bem do seu lado, levando-o do mundo das trevas para o retiro de seu amor.

Autor desconhecido

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Meus passos

Ando em cadência, no ritmo do meu peito que vibra. Dou passos no caminho de pedra, passos na grama, na terra úmida e de volta à pedra. Piso na poça que a chuva formou, não me importo. Não perco o compasso. Quero sentir, quero respirar. Redescobrir, re-conhecer.

Os pés gelados, a neblina cerrada envolve num abraço o corpo todo. Atmosfera de inverno da infância, promessa de infinitas possibilidades. O bosque velado, apenas as araucárias se impõem ao olhar, esculturas de majestosa atemporalidade, guardiãs do ontem e do sempre.

Meus passos são um pouco passos de criança, brincalhões. Mas são passos firmes, portam confiança, consciência. Buscam o passado, desejam o futuro, aceitam o presente, intensamente. Não é dia para passos melancólicos, de sabor agridoce.

Estou em casa...

Letícia L. Möller

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Longe, longe

Ando, ando...
Bancos vazios
em corredores soturnos.
Prédios noturnos
me observam calados.
Rostos, vozes
tudo, tudo
longe, longe...

O silêncio salta
faz piruetas e dança, invisível
pelo espaço intransponível
que separa eu de mim.
Não ouço meus passos
mas não importa
pois nem eu nem cada porta
por que passo
compreende esse trajeto.
Seguro
com as estrelas
o peso dos véus,
do escuro
e da ausência
inadmissível
intocável
intransponível
inassimilável.
O vento venta
mas venta pouco.
Quem dera a paz...
Ventasse mais...
Ventasse mais!
E expulsasse
de minha mente enfumaçada
as centopéias indecifráveis
que me fazem não achar.
Fábio Rocha


terça-feira, 11 de novembro de 2008

O rio

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.
Manuel Bandeira

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Aurora

O poeta ia bêbedo no bonde.
O dia nascia atrás dos quintais.
As pensões alegres dormiam tristíssimas.
As casas também iam bêbedas.
Tudo era irreparável.
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada),
que o mundo ia acabar às 7 e 45.
Últimos pensamentos! últimos telegramas!
José, que colocava pronomes,
Helena, que amava os homens,
Sebastião, que se arruinava,
Artur, que não dizia nada,
embarcam para a eternidade.
O poeta está bêbedo, mas
escuta um apelo na aurora:
Vamos todos dançar
entre o bonde e a árvore?

Entre o bonde e a árvore
dançai, meus irmãos!
Embora sem música
dançai, meus irmãos!
Os filhos estão nascendo
com tamanha espontaneidade.
Como é maravilhoso o amor
(o amor e outros produtos).
Dançai, meus irmãos!
A morte virá depois
como um sacramento.

Carlos Drummond de Andrade



sábado, 8 de novembro de 2008

Conhece o vocábulo escardinchar? - Rubem Braga

Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?

O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Aliás, se isso pode servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.
Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.

Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma "página de bom vernáculo, exemplar". Tive vontade de responder: "Mera coincidência" — mas não o fiz para não entristecer o homem.

Espero que uma velhice tranqüila - no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios — me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?).

Alguém já me escreveu também — que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação — contra a língua". Mas acho que isso é exagero.

Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos cinqüenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo — e nunca soube o que fosse escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.

Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar.

Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri — e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas da "Última Hora" ou lendo o horóscopo e as histórias em quadrinhos de "O Globo?".

No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.

Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente — de Cachoeiro de Itapemirim!

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A adversidade desperta em nós...

"A adversidade desperta em nós
capacidades que, em circunstâncias favoráveis,
teriam ficado adormecidas."
Horácio


quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A música está submersa em todas as coisas...


A música está submersa em todas as coisas...
É a alma que canta em tudo que é vivo, em tudo que é vida!
Há música em tudo, até mesmo no silêncio, ecoando os acordes do tempo!
Nada como se embriagar de música, na alegria ou na tristeza!
Ela celebra, acorda a alma, muda a sintonia!
Meu ópio diário para libertar a dor e celebrar a vida!
Que a música nos eleve...!!

O tempo? Pura sinfonia...
Poesia? Música em movimento...

Raiblue

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Caminhante


Caminhante, são teus rastos
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há-de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.
Ontem eu sonhei que via
Deus e que a Deus falava;
e sonhei que Deus me ouvia...
Depois sonhei que sonhava...
Dizes que nada se cria?
Não te importes, e com o barro
da terra faz uma taça
para que beba teu irmão.
Dizes que nada se cria?
Oleiro, mãos ao trabalho!
Faz teu copo e não te importe
se não podes fazer barro.
Dizes que nada se perde?
Se esta taça de cristal
se me partir, nunca nela
eu beberei, nunca mais.
À noite sonhei que ouvia
Deus, que me gritava: Alerta!
Depois Deus adormecia
e eu gritava: Desperta!
Antônio Machado