quinta-feira, 29 de abril de 2010

Quem disse


Quem disse
que esta ausência te devia?
Quem pensou
que esta denúncia se enganava?
Que um dia era pior
que outro dia
Que à noite era melhor
porque sonhava?
Quem disse
que esta dor te pertencia?
Quem pensou que este amor
me perturbava?
Que o longe era mais perto
se fugias
Que o dentro era mais longe
porque estavas?
Quem disse
que este ardor te evidencia?
Quem pensou que esta pena
me cansava?
Que calar era pior
se te despia
Que gritar era melhor
se te largava?
Quem disse
que esta paixão me curaria?
Quem pensou que esta loucura
me passava?
Que deixar-te era paz
porque corria
Que querer-te era mau
porque te amava?
Quem disse
que esta paixão te espantaria?
Quem pensou que esta saudade
me rasgava?
Que tudo era diferente
se te via
Que o pior era saber
que aqui não estavas?
Quem disse
que esta ternura te devia?
Quem pensou que este saber
se enganava?
Neste langor crescente
que desvia
Neste entender de nós
que cintilava?

Maria Teresa Horta



terça-feira, 27 de abril de 2010

Natureza humana

Cheguei. Sinto de novo a natureza.
Longe do pandemônio da cidade
Aqui tudo tem mais felicidade
Tudo é cheio de santa singeleza
Vagueio pela múrmura leveza
Que deslumbra de verde e claridade
Mas nada. Resta vívida a saudade
Da cidade em bulício e febre acesa
Ante a perspectiva da partida
Sinto que me arranca algo da vida
Mas quero ir. E ponho-me a pensar
Que a vida é esta incerteza que em mim mora
A vontade tremenda de ir-me embora
E a tremenda vontade de ficar

Vinícius de Moraes


sábado, 24 de abril de 2010

É preciso que eu suporte...


"É preciso que eu suporte duas ou três larvas

se quiser conhecer as borboletas..."

Antoine de Saint-Exupéry (A rosa do Pequeno Príncipe)




quinta-feira, 22 de abril de 2010

Eu nunca guardei rebanhos


Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pelas mãos das Estações
A seguir e a olhar.

Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no mundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.

Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
E é porque sinto o que escrevo ao pôr do sol
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
Em cima dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos
Que sou qualquer cousa natural
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente,
Com a manga do bibe riscado.

Fernando Pessoa

Earth day 2010

terça-feira, 20 de abril de 2010

Chegar...

Chegar,
Como brisa que atravessa janela.
Soprando de leve,
As brumas do passado.
Chegar,
Como o barco.
Trazendo alegrias,
Após enfrentar as procelas sombrias.
Chegar,
Como a saudade.
Que bate,
De manso, no coração.
Chegar,
Como chuva, fininha,
Mansinha, criadeira,
Necessária e tão querida.
Ficar,
Nas lembranças do passado,
Nas estampas do presente,
A retratar nosso ontem no hoje.
Ficar,
Para sempre.
Na imagem nunca esquecida,
Dos que nos são tão queridos.
A vida,
É chegar e ficar,
Para sempre.
Vida nunca será partida.

Cecília Meireles


sábado, 17 de abril de 2010

A provação vem


"A provação vem, não só para testar o nosso valor,
mas para aumentá-lo; o carvalho não é apenas testado,
mas enrijecido pelas tempestades."
Lettie Cowman

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Pensamento

O pensamento caminha
pelas estradas, dos seus sonhos,
procura, por todos os lados
sinais de um rosto risonho.
Repassou por várias vielas
visitou lugares já esquecidos,
algo, que o tornasse ciente
desse amor, a tanto perdido.
O pensamento tem asas
que nunca na vida descansam
visita o passado, pesquisa o futuro,
tenta de todas as formas
trazer, para o presente o que quiser
nunca espera o futuro, ama agora
a quem quer.

Roldão Aires

terça-feira, 13 de abril de 2010

O beijo


Centelha,
fagulha,
alma e matéria.
Agulha.

Seta certeira,
golpe,
corpo e alma
à sorte.

Mãos, línguas,
coração e
meia-morte.

Morre-se a cada beijo verdadeiro
e ressuscita-se para o primeiro.

Autor desconhecido

sábado, 10 de abril de 2010

É a repetição perante a criação


"É a repetição perante a criação, é a monotonia monocromática
perante a multiplicidade das cores, é a estagnação da vida...
Para a vida, as portas não são obstáculos, mas diferentes passagens!"
Içami Tiba

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Felicidade


A doce tarde morre. E tão mansa
Ela esmorece,
Tão lentamente no céu de prece,
Que assim parece, toda repouso
Como um suspiro de extinto gozo
De uma profunda, longa esperança
Que, enfim, cumprida, morre, descansa...

E enquanto a mansa tarde agoniza,
Por entre a névoa fria do mar,
Toda minhalma foge na brisa:
Tenho vontade de me matar!

Oh, ter vontade de se matar...
Bem sei que é cousa que não se diz,
Que mais a vida me pode dar?
Sou tão feliz!

- Vem, noite mansa...

Manuel Bandeira



terça-feira, 6 de abril de 2010

Intimidade

No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.

José Saramago


quinta-feira, 1 de abril de 2010