terça-feira, 29 de setembro de 2009

O verbo no infinito

Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer de tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...

Vinícius de Moraes

sábado, 26 de setembro de 2009

A vida eterna

Manoel foi pro céu. O que o surpreendeu muito. Era Ateu, descrente total, a última coisa que esperava era descobrir que há vida depois da morte. Mas morreu e quando abriu os olhos se viu numa sala de espera cheia de gente, com uma senha na mão, esperando para ser chamado para uma entrevista. Não havia um grande portão dourado, como vira em mais de uma representação da entrada do céu, e aparentemente São Pedro não era mais o porteiro. Fora substituído por recepcionistas com computadores que faziam a triagem dos recém-chegados. Mas o resto era igual ao que as pessoas imaginavam: nuvens, todo mundo de camisola, música de harpa...

O número da sua senha era enorme e Manoel deduziu que mantinham uma numeração corrida, desde o primeiro morto. Mas só chamavam pelos três últimos algarismos. Enquanto não chamavam seu número, Manoel puxou conversa com o homem sentado ao seu lado. Que felizmente também era um morto brasileiro. Se apresentou:

- Manoel. Enfarte.

- Bira. Tiro.

- Você esperava isto aqui?

E Manoel fez um gesto que englobava toda a vida eterna.

- Pra dizer a verdade – disse Bira – pensei que eu fosse direto para o inferno.

- Acho que elas é que decidem pra onde a gente vai – disse Manoel, indicando as recepcionistas com a cabeça.

E, com efeito, quando voltou da sua entrevista com a recepcionista e cruzou com o Manoel, que fora chamado, Bira anunciou:

- Me deram uma chance. Purgatório. Duzentos anos.

- Parabéns!

A recepcionista era simpática. Digitou o nome de Manoel no computador e quando a sua ficha apareceu, exclamou:

- Ah, Brasil! Português?

- Português.

E o Português dela era perfeito. Fez várias perguntas para confirmar os dados sobre Manoel que tinha no computador. Sempre sorrindo. Mas o sorriso desapareceu de repente. Foi substituído por uma expressão de desapontamento.

- Ai, ai, ai... – disse a recepcionista.

- O que foi?

- Aqui onde diz “Religião” está: “nenhuma.”

- Pois é...

- O senhor não tem nenhuma religião? Pode ser qualquer uma. Nós encaminhamos para o céu correspondente. Ou, se o senhor preferir, reencarnação...

- Não, não...

- Então, sinto muito. Sua ficha é ótima, mas... Manoel a interrompeu:

- Não tem céu só para Ateu não?

Não existia um céu só para Ateus. Nem para agnósticos.
Também não eram permitidas conversões “pós-mortem.” E deixá-lo entrar no céu, numa eternidade em que nunca acreditara, o senhor Manoel teria que concordar, não seria justo para com os que sempre acreditaram. Infelizmente, ela tinha que...

- Espere! – disse Manoel, dando um tapa na testa. – Me lembrei agora. Eu sou Univitalista.

- O quê?

- Univitalista. É uma religião nova. Talvez por isso não esteja no computador.

- Em que vocês acreditam?

- Numa porção de coisas que eu não me lembro agora, mas a vida eterna é uma delas. Isso eu garanto. Pelo menos foi o que me disseram quando eu me inscrevi .

A recepcionista não parecia muito convencida mas pegou um livreto que mantinha ao lado do computador e foi direto na letra U. Não encontrou nenhuma religião com aquele nome.

- Ela é novíssima – explicou Manoel. – Ainda estava em teste.

A recepcionista sacudiu a cabeça mas disse que iria consultar o seu chefe.
Manoel deveria voltar ao seu lugar e esperar a decisão do chefe.
E Manoel voltou para o seu lugar, e desta vez o homem sentado ao seu lado é que puxou conversa. Abriu os braços e disse:

- Você acredita nisto?

- Eu...- começou a dizer Manoel, mas o outro não o deixou falar.

- É tudo encenação. É tudo truque. Eles tentam nos pegar até o último minuto.

- Por favor. Eu...

- Olha aí.

O homem tinha se levantado e chutado as nuvens que cobriam o chão da sala de espera.
Mas o Manoel saltou sobre o homem, cobriu sua cabeça com a camisola, atirou-o no chão e sentou-se em cima dele. Para ele ficar quieto e não estragar tudo afinal, mesmo que fosse só propaganda, era a vida eterna.


Luis Fernando Veríssimo

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

É mais além

A casa parece deserta, mas não está. Desde que nela habita, as paredes vem colecionando seus segredos. É certo que, vez ou outra, ele tenta despistar a atenção dessas sinuosas invasoras de privacidade. Mas não demora e ele desiste e se entrega ao gosto de contar a elas seus recentes devaneios, a voz embargada, o soluço, a gargalhada. Uma delinquência emocional.

Tem horror ao liquidificador. Não é apenas o barulho que o endoidece, mas principalmente a ideia de se triturar tudo para nunca mais se ter o inteiro. Ele sabe o que é ser despedaçado, da dolência de ter de catar os cacos de si e depois passar muito tempo a montar esse quebra-cabeça. E nem sempre se sente inteiro.

Ele adora o silêncio sendo invadido pelas canções, principalmente as que fazem de conta que dizem isso, mas dizem é aquilo, o que dá no isso mesmo. Aprecia a jornada que é a descoberta do gosto de uma canção. Para ele é necessário saboreá-la, a tarde vazando do tempo, a luz adormecendo sobre as costas da noite. Quando ninguém mais tem o que dizer e todos adormecem de cansaço ou libação — ou porque as histórias que seus pais contam os embalam até chegarem a esse mundo onde todos andam de olhos fechados e bocejam —, então ele sente: a vida tatuando na sua língua o gosto, invadindo sua alma com gosto, permitindo a ele, novamente, gostar.

Ao observá-lo de longe, poucos alcançam a inquietação que se acomoda em sua alma, até porque ela parece ter alma própria que vive à sombra desse homem que, às vezes, rodopia, gira e gira, cai no mesmo lugar achando que mudou de país. E quando percebe isso, e apesar da tristeza, do desapontamento, ele dá o primeiro passo adiante, reinicia a viagem. Corteja o destino e seus véus de futuro inusitado.

Tenho comigo que ele aprendeu a tirar esperança da cartola... Que até faz bolhas de sabão com elas. Que surrupiou das gargalhadas das crianças a graça que vê nas coisas nem sempre assim tão graciosas, fortalecendo a leveza da pessoa que foi, que é, que há de ser.

Numa das suas conversas com as paredes, descobriu que precisava ver a rua, como quando jogava futebol com a molecada lá do bairro, ou ficava girando e girando, os olhos fechados... Sabe os desenhos em que o personagem fica girando por um tempo no mesmo lugar e acaba abrindo um buraco no chão e sumindo? Ele não... Ele parecia criar asas, um menino saindo do chão, chegando tão longe, tocando o sol, o ser, o céu, as lantejoulas dependuradas no universo.

A casa não está deserta. As fronhas dos travesseiros abarcam lágrimas de noites em que não sabia como ou quando. Onde? Mas são apenas moradias para momentos em que se flerta com abismos. E ainda bem que existe a máquina de lavar que faz com que fronhas chorosas se transformem em acomodação para os perfumes de amaciantes de roupa. Alguns são bem agradáveis... E a gente acaba sonhando com levezas.

Já na rua, o homem vai brincar de menino, de ter ousadias que adulto bloqueia, porque sim, porque acha que é isso que gente grande faz. Lembra dos rodopios e os olhos fechados? Soubéssemos o que ele vê... Mas nem às paredes esse segredo o moço conta, apesar da insistência desvairada das tais. Porém é fato: ele enxerga muito mais do que aqueles que, vista boa, olhos grudados na vitrine da vida, jamais enxergarão. Quem não sabe que o olhar depende da cadência da alma?

Sair para ver o mundo é jeito bom de restabelecer contato com a vida que também é vivida com os outros. Ele gosta de andar de bicicleta, enquanto visita suas lembranças e bota reparo nos próprios sentimentos. As paredes de sua casa endoidecem de curiosidade: “O que será que ele não nos contou?”

O céu, as ruas, as praças, os labirintos urbanos são testemunhas dos passeios do moço. Posso apostar que, como observadora que não faz questão de lógica ou de corroborar fatos, que ele se enche de amansamento quando pedala sua bicicleta alugada, como divindades o visitassem nesse momento, sussurrando em seu ouvido os mistérios da sua própria humanidade. E o homem resgata o menino, sem medo, sem tempo, os olhos fechados de tocar o céu, o seu, o meu desejo de enxergar além.

O olhar liberto das amarras. O coração aberto.


Carla Dias

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Há uma música do povo


Há uma música do povo,
Nem sei dizer se é um fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado…
Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser…
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver…
E ouço-a embalado e sozinho…
É isso mesmo que eu quis…
Perdi a fé e o caminho…
Quem não fui é que é feliz.
Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção…
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração…
Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido…
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!


Fernando Pessoa

sábado, 19 de setembro de 2009

Todos os dias devíamos...


"Todos os dias devíamos ouvir
um pouco de música,
ler uma boa poesia,
ver um quadro bonito e,
se possível, dizer algumas
palavras sensatas."


Goethe

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Se tivesse acreditado...


“Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer
verdades teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando,
falei muitas vezes como um palhaço mas jamais duvidei
da sinceridade da plateia que sorria.”

*

"Um dia sem rir é um dia desperdiçado."

Charles Chaplin


terça-feira, 15 de setembro de 2009

No mistério do Sem-Fim


No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta.

Cecília Meireles

sábado, 12 de setembro de 2009

A décima oitava

Ela tem, delegado, um nariz arrebitado, mas isso não é nada. Nariz arrebitado a gente resiste. Mas a ponta do nariz se mexe quando ela fala.
Isso quem resiste? Eu não. Nunca pude resistir à mulher que quando fala a ponta do nariz sobe e desce. Muita gente nem nota. É preciso prestar atenção. É preciso ser um obsessivo como eu. O nariz mexe milímetros. Para quem não está vidrado, não há movimento algum, às vezes só se nota de determinada posição, quando a mulher está de perfil. Você vê a pontinha do nariz se mexendo, meu Deus! Subindo e descendo. No caso dela também se via de frente. Uma vez ela reclamou, “você sempre olha para a minha boca quando eu falo”. Não era a boca, era o nariz. Eu ficava vidrado no nariz, Nunca disse pra ela que era o nariz. Delegado, eu sou louco? Ela ia dizer que era mentira, que seu nariz não mexia. Era até capaz de arranjar um jeito de o nariz não mexer mais.

Mas a culpa, delegado, é da inconstância humana. Ninguém é uma coisa só. Nós todos somos muitos. E o pior é que de um lado da gente não se deduz o outro, não é mesmo? Você, o senhor, acreditaria que um homem sensível como eu, um homem que chora quando o Brasil ganha bronze, delegado, bronze? Que se emocionava com as penugens nas coxas dela? Que agora mesmo não pode pensar na ponta do nariz dela se mexendo que fica arrepiado? Que eu seria capaz de atirar um dicionário na cabeça dela? E um Aurelião completo, capa dura, não a edição condensada, mas atirei. Porque ela também se revelou. Ela era ela e era outras. A multiplicidade humana, é isso. A tragédia é essa. Dois nunca são dois, são 17 de cada lado. E quando você pensa que conhece todos, aparece o décimo oitavo. Como eu poderia adivinhar, vendo a ponta do narizinho dela subindo e descendo, que um dia ela me faria atirar o Aurelião completo na cabeça dela? Capa dura e tudo? Eu, um homem sensível?

Eu devia ter desconfiado de alguma coisa quando descobri que o celular dela tocava Wagner. Quem escolhe Wagner para o seu telefone celular? Pode-se saber muita coisa sobre uma pessoa pelo que ela escolhe para tocar quando soa o seu celular. Eu achei engraçado o Wagner, ela um doce de mulher escolhendo o Wagner. Mas na hora não dei maior importância. Hoje sei que Wagner era um sinal. Um dos outros, das outras, que ela tinha por dentro, escolheu o Wagner. Foi uma maneira de dizer que o nariz arrebitado não era tudo, que eu não me enganasse com o seu jeitinho de falar, como apelido que ela me deu, “Guinguinha”, veja o senhor, “Guinguinha”, só depois eu descobri que era o nome de um cachorro que ela teve quando era pequena e morreu atropelado, “Guinguinha”. Que uma que ela tinha por dentro era uma Valquíria indomável de 2 metros. Hein? Fagner, não. Wagner. O alemão.

Tudo bem, eu também tenho outros por dentro. Nós estávamos juntos um tempão quando ela descobriu que eu sabia imitar o Sílvio Santos. Sou um bom imitador, o meu Romário também é bom, faço um Lima Duarte passável, mas ninguém sabe, é um lado meu que ninguém conhece. Ela ficou boba, disse: “Eu não sabia que você era artista”. Ela também não sabia que eu tenho pânico de berinjela. Não é só não gostar, é pânico mesmo, na primeira vez que ela serviu beringela eu saí correndo da mesa, ela atrás gritando: “Guinguinha, o que foi?”

Também sou um obsessivo, reconheço. A obsessão foi a causa de nossa briga final. Tenho outros por dentro que nem eu entendo, minha teoria é que a gente nasce com várias possibilidades e quando uma predomina, as outras ficam lá dentro, como alternativas descartadas, definhando em segredo. E, vez por outra, querendo aparecer. Tudo bem, viver juntos é ir descobrindo o que cada um tem por dentro, os 17 outros de cada um, e aprendendo a viver com eles. A gente se adapta. Um dos meus 17 pode não combinar com um dos 17 dela, então a gente cuida para eles nunca se encontrarem. A felicidade é sempre uma acomodação. Eu estava disposto a conviver com ela e suas 17 outras, a desculpar tudo delegado, porque a ponta do seu nariz mexe quando ela fala.

Mas aí surgiu a décima oitava ela. Nós estávamos discutindo as minhas obsessões. Ela estava se queixando das minhas obsessões. Não sei como, a discussão derivou para a semântica, eu disse que “obsedante” e “obsecante” eram a mesma coisa, ela disse que não, eu disse que as duas palavras eram quase iguais e ela disse “Rará”, depois disse que obcecante era com “c” depois do “b”, eu disse que não, que também era com “s”, fomos consultar o dicionário e ela estava certa, e aí ela deu outra risada mais debochada e eu não me aguentei e o Aurelião voou. Sim, atirei o Aurelião de capa dura na cabeça dela.

A gente aguenta tudo, não é delegado, menos elas quererem saber mais do que a gente.
Arrogância intelectual não.


Luis Fernando Veríssimo

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Saber viver


Não sei... Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura... Enquanto durar

Cora Coralina

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Recordo ainda


Recordo ainda… e nada mais me importa…
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta…


Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança…


Estrada afora após segui… Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino… acreditai!…
Que envelheceu, um dia, de repente!…

Mário Quintana

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Amiga dos ventos

Sou amiga dos ventos
Sou amante dos mares
Sou bem-vinda nos lugares
Aonde vou

Sou a força da terra
Sou a luz dos luares
Sou a chama nos altares
Do amor

Não que algo aconteça
De especial comigo
Que eu possua mil poderes
Celestiais
Nem que eu seja dotada
De um saber feiticeiro
Protegida dos potentados
Astrais

O que eu trago é mais simples
É banal como a chuva
Natural como uma uva
Ter sabor
Vem da vida o mistério
Dessa facilidade
De ser tudo e nada disso
Ter valor

Gilberto Gil

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio


Chamo -Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.
Peço -Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só dos teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que eu quero ver.
Peço -Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.

E que o teu reino antes do tempo venha.
E se derrame sobre a Terra
Em primavera feroz pricipitado.

Sophia de Mello Breyner Andresen