terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Poema de Natal


Caixas de tamanhos diversos,
cores mil,
laços bordados em todos os extremos,

Vitrines com cenários Natalinos,
com o verde acenando a esperança
Rumo ‘a vidas sem dores e guerras

As fitas dos presentes se desembrulham,
caem livremente,
como na dança de um corpo ritmado

O espírito do amor baila pelos ares,
exalando a pétala da bondade
Suave e profunda,
acaricia os rostos embriagados pela desilusão

Os espinhos são contemplados por olhares profundos
Mesclam-se nas pétalas que formam pedaços de flores
Unidos em só canção
Nas vozes trêmulas de anjos
Gotejam a alma faceira
De um mundo mais harmônico
Celebrando a aspirante PAZ.

Débora Vilella Petrin

sábado, 20 de dezembro de 2008

Está chegando o verão - Luis Fernando Veríssimo

E com ele também chegam os pedágios, os congestionamentos na estrada, os bichos geográficos no pé e a empregada cobrando hora-extra.
Verão também é sinônimo de pouca roupa e muito chifre, pouca cintura e muita gordura, pouco trabalho e muita micose.
Verão é picolé de ki-suco no palito reciclado, é milho cozido na água da torneira, é coco verde aberto pra comer a gosminha branca.
Verão é prisão de ventre de uma semana e pé inchado que não entra no tênis.
Mas o principal, o ponto alto do verão é... a praia!! Ah, como é bela a praia!
Os cachorros fazem cocô e as crianças pegam pra fazer coleção. Os casais jogam frescobol e acertam a bolinha na cabeça das "véias".
Os jovens de jet ski atropelam os surfistas, que por sua vez, miram a prancha pra abrir a cabeça dos banhistas.
O melhor programa pra quem vai à praia é chegar bem cedo, antes do sorveteiro, quando o sol ainda está fraco e as famílias estão chegando.
Muito bonito ver aquelas pessoas carregando vinte cadeiras, três geladeiras de isopor, cinco guarda-sóis, raquete, frango, farofa, toalha, bola, balde, chapéu e prancha, acreditando que estão de férias.
Em menos de cinqüenta minutos, todos já estão instalados, besuntados e prontos pra enterrar a avó na areia.
E as crianças? Ah, que gracinha!
Os bebês chorando de desidratação, as crianças pequenas se socando por uma conchinha do mar, os adolescentes ouvindo walkman enquanto dormem.
As mulheres também têm muita diversão na praia, como buscar o filho afogado e caminhar vinte quilômetros pra encontrar o outro pé do chinelo.
Já os homens ficam com as tarefas mais chatas, como perfurar um poço pra fincar o cabo do guarda-sol. É mais fácil achar petróleo do que conseguir fazer o guarda-sol ficar em pé.
Mas tudo isso não conta, diante da alegria, da felicidade, da maravilha que é entrar no mar! Aquela água tão cristalina, que dá pra ver os cardumes de latinha de cerveja no fundo.
Aquela sensação de boiar na salmoura como um pepino em conserva.
Depois de um belo banho de mar, com o rego cheio de sal e a periquita cheia de areia, vem aquela vontade de fritar na chapa. A gente abre esteira velha, com cheiro de velório de bode, bota o chapéu, os óculos escuros puxa um ronco bacaninha.
Isso é paz, isso é amor, isso é o absurdo do calor. Mas, claro, tudo tem seu lado bom.
E à noite o sol vai embora.
Todo mundo volta pra casa tostado e vermelho como mortadela, toma banho e deixa o sabonete cheio de areia pro próximo.
O shampoo acaba e a gente acaba lavando a cabeça com qualquer coisa, desde o creme de barbear até desinfetante de privada.
As toalhas, com aquele cheirinho de mofo que só a casa de praia oferece.
Aí, uma bela macarronada pra entupir o bucho e uma dormidinha na rede pra adquirir um bom torcicolo e ralar as costas queimadas.
O dia termina com uma boa rodada de tranca e uma briga em família.
Todo mundo vai dormir bêbado e emburrado, babando na fronha e torcendo, pra que na manhã seguinte, faça aquele sol e todo mundo possa se encontrar no mesmo inferno tropical...
"Qualquer semelhança com a vida real, é uma mera coincidência..."

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Asas da liberdade


Logo que o sol aponta no resplandecer de cada dia nascente, a natureza saúda os homens com suas hostes de esperança. Então, faz um convite mágico a todas as criaturas que transitam nesse planeta, convocando-as para, juntamente com ela, o seu destino. Sua voz é fina, é dotada de insigne beleza; sua voz canta alto. A natureza comunica-se conosco pelos mais diversos meios, mas é pelo canto dos pássaros que ela faz valer a sua voz.

Pássaros grandes, pequenos. Sua plumagem abastada ensina a lição que a magia da criação está na sua diversidade; com cantos magníficos ou simples piados eles cumprem a sua missão de levar aos ouvidos humanos as mensagens implícitas da vida, como verdadeiros Hermes da existência.

Mas de todas as raças, uma com certeza conquista o homem.

Oriundos da Austrália, os pássaros da raça Diamante Gold hipnotizam-nos pela sua graça e inocência, que só os seres do Éden são capazes de possuir. Penas em cores exaltadas preenchem os corpos das pequenas aves, verdadeiras obras de arte pintadas por autoria do acaso. Pássaros de imenso primor, como aquele que Amanda ganhou no seu aniversário.

O presente veio das mãos do pai, que buscava amenizar a angústia de uma filha deprimida. Confinada a uma cadeira de rodas, a menina, no entanto, já havia se acostumado com sua sina. Desde muito nova, nunca viveu a vida igual às outras pessoas: participava de seu modo, num mundo particular, composto de atos e comportamentos diferentes, mas os quais não podia repreender. A intransigência dos homens a repudiava, de um lado pelo preconceito e de outro pela indiferença.

Sentia-se familiarizada com o pássaro. Afinal, ambos viviam num mundo de prisões. As lembranças de sua vivência reapareciam das covas pútridas de sua angústia, trazendo consigo melancolia. Não era fácil enfrentar as crianças que apontavam os dedos curiosos em sua direção, todos os dias, ou o constrangimento ser diferente, de jamais imaginar a sensação de coisas simples que todas as pessoas faziam, sem entender o encanto de cada ato. O animal na gaiola lhe sentimentos desagradáveis. Com certeza, seria melhor que ele estivesse livre.

A sós com o passarinho, Amanda observava, embasbacada, a beleza única do animal. Abruptamente, segurou a gaiola nas mãos. Os olhos atentos da ave voltaram-se para a menina, analisando o desconhecido. No olhar, podia-se sentir a pureza que jamais seria corrompida.

Amanda abriu a portinhola da gaiola e agarrou a pequena ave, de tons negros e azulados, nas suas mãos. Uma comunicação silenciosa se fez, através dos olhares imobilizados.

A menina dirigiu-se à janela; em seguida soltou o pássaro, elevando de uma só vez seus braços aos céus..

Pelas árvores verdejantes do parque ela ainda podia ver o ilustre animal, alternando seus vôos e pousos, entre peripécias. Nas asas da liberdade, Amanda também voava, realizando os seus mais infantes sonhos, delírios de uma mente sedenta de libertação.

No fim, ela ouvia as vozes da natureza falando e entendia, por sons compreendidos somente pela pureza, que o homem pode até transformar a vida e construir gaiolas, mas seu verdadeiro valor, consiste de fato, numa atitude que exige muito menos dele: abrir as portas de suas prisões e se integrar, assim como os pássaros, à fonte de toda a sua existência, a natureza.

Autor desconhecido


segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Microcosmo


Pensando e amando, em turbilhões fecundos
És tudo: oceanos, rios e florestas;
Vidas brotando em solidões funestas;

Primaveras de invernos moribundos;

A Terra; e terras de ouro em céus profundos,
Cheias de raças e cidades, estas
Em luto, aquelas em raiar de festas;
Outras almas vibrando em outros mundos;

E outras formas de línguas e de povos;
E as nebulosas, gêneses imensas,
Fervendo em sementeiras de astros novos;


E todo o cosmos em perpétuas flamas…
- Homem! és o universo, porque pensas,
E, pequenino e fraco; és Deus, porque amas!

Olavo Bilac

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Dentro de mim mora um anjo


Quem me vê assim cantando
não sabe nada de mim
dentro de mim mora um anjo
que tem a boca pintada
que tem as asas pintadas
que tem as unhas pintadas
que passa horas a fio
no espelho do toucador
dentro de mim mora um anjo
que me sufoca de amor
Dentro de mim mora um anjo
montado sobre um cavalo
que ele sangra de espora
ele é meu lado de dentro
eu sou seu lado de fora
Quem me vê assim cantando
não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo
que arrasta as suas medalhas
e que batuca pandeiro
que me prendeu nos seus laços
mas que é meu prisioneiro
acho que é colombina
acho que é bailarina
acho que é brasileiro.
Composição: Sueli Costa/ Cacáso


quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A história do lápis


Um menino olhava para a avó a escrever uma carta. A certa altura perguntou:
- Estás a escrever uma história que aconteceu comigo? E, por acaso, é uma história sobre mim?
A avó parou de escrever a carta, sorriu e comentou com o neto:
- Estou a escrever sobre ti, é verdade. No entanto, mais importante do que as palavras, é o lápis que estou a usar. Gostava que tu fosses como ele, quando cresceres.
O menino olhou para o lápis, intrigado, e não viu nada de especial.
- Mas é igual a todos os lápis que vi na minha vida!
- Tudo depende do modo como tu olhas para as coisas. Há nele cinco qualidades que, se as conseguires manter, farão de ti uma pessoa sempre em paz com o mundo.

A primeira qualidade: tu podes fazer grandes coisas, mas nunca te deves esquecer de que existe uma Mão que guia os teus passos. A esta mão nós chamamos Deus, e Ele deve sempre conduzir-te em direção à Sua vontade.

A segunda qualidade: de vez em quando, é preciso parar de escrever e usar o afia-lápis. Isso faz com que o lápis sofra um bocado, mas deixa-o mais afiado. Portanto, aprende a suportar algumas dores, porque elas farão de ti uma pessoa melhor.

A terceira qualidade: o lápis permite sempre que usemos uma borracha para apagar aquilo que está errado. Percebe que corrigir uma coisa que fizemos não é necessáriamente mau, mas importante para nos manter no caminho da justiça.

A quarta qualidade: o que realmente importa no lápis não é a madeira ou a sua forma exterior, mas o grafite que está dentro. Portanto, presta sempre atenção naquilo que acontece dentro de ti.

Finalmente, a quinta qualidade do lápis: ele deixa sempre uma marca. Da mesma maneira, compreende que tudo o que tu fizeres na vida vai deixar traços, por isso tenta ser consciente de todas as tuas ações."

(Ser Como o Rio Que Flui - PAULO COELHO)

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Olho as minhas mãos

Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas do fundo do mar…
Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras !
Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável do tempo,
Que me sustenta, e mata, e que vai secretando o pensamento
Como tecem as teias as aranhas.
A que mundo
Pertenço ?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem cessar.
Mas nada, disso tudo, diz: "existo".
Porque apenas existem…
Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas,
Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento
Mistura, confunde e dispersa no ar…
Nem na estrela do céu nem na estrela do mar
Foi este o fim da Criação !
Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos ?
Quem faz - em mim - esta interrogação ?

Mário Quintana


sábado, 6 de dezembro de 2008

Origem feminina - Luis Fernando Veríssimo

Existem várias lendas sobre a origem da Mulher.
Uma diz que Deus pôs o primeiro homem a dormir, inaugurando assim a anestesia geral, tirou uma de suas costelas e com ela fez a primeira mulher.
E que a primeira provação de Eva foi cuidar de Adão e agüentar o seu mau humor, enquanto ele convalescia da operação.
Uma variante desta lenda diz que Deus, com seu prazo para a Criação estourado, fez o homem às pressas, pensando “Depois eu melhoro”, e mais tarde, com tempo, fez um homem mais bem-acabado, que chamou Mulher, que é “melhor” em aramaico.
Outra lenda diz que Deus fez a mulher primeiro, e caprichou nas suas formas, e aparou aqui e tirou dali, e com o que sobrou fez o homem só para não jogar barro fora.
Zeus teria arrancado a mulher de sua própria cabeça.
Alguns povos nórdicos cultivam o mito da Grande Ursa Olga, origem de todas as mulheres do mundo, o que explica o fato das mulheres se enrolarem periodicamente em pêlos de animais, cedendo a um incontrolável impulso atávico, nem que seja só para experimentar, na loja, e depois quase desmaiar com o preço.
Em certas tribos nômades do Meio Oriente ainda se acredita que a mulher foi, originariamente, um camelo, que na ânsia de servir seu mestre de todas as maneiras foi se transformando até adquirir sua forma atual.
No Extremo Oriente existe a lenda de que as mulheres caem do céu, já de kimono.
E em certas partes do Ocidente persiste a crença de que mulher se compra através dos classificados, podendo-se escolher idade, cor da pele e tipo de massagem.
Todas estas lendas, claro, têm pouco a ver com a verdade científica. Hoje se sabe que o Homem é o produto de um processo evolutivo que começou com a primeira ameba a sair do mar primevo, e é o descendente direto de uma linha específica de primatas, tendo passado por várias fases até atingir o seu estágio atual e aí encontrar a Mulher, que ninguém ainda sabe de onde veio.
É certamente ridículo pensar que as mulheres também descendem de macacos. A minha mãe, não!
Uma das teses mais aceitáveis sobre o papel da mulher na evolução do homem é a de que o primeiro encontro entre os dois se deu no período paleolítico, quando um homo-sapiens mas não muito, chamado, possivelmente, Ugh, saiu para caçar e avistou, sentado numa pedra, penteando os cabelos, um ser que lhe provocou o seguinte pensamento, em linguagem de hoje:
"Isso é que é mulher e não aquilo que tenho na caverna".
Ugh aproximou-se da mulher e, naquele seu jeitão, deu a entender que queria procriar com ela.”Agh maakgrom grom”, ou coisa parecida. A mulher olhou-o de cima a baixo e desatou a rir.
É preciso lembrar que Ugh, embora fosse até bem apessoado pelos padrões da época, era pouco mais do que um animal aos olhos da mulher. Tinha a testa estreita e as mandíbulas pronunciadas e usava gordura de mamute nos cabelos.
A mulher disse alguma coisa como “Você não se enxerga, não?” e afastou-se, enojada, deixando Ugh desolado. Antes dela desaparecer por completo, Ugh ainda gritou: “Espera uns 10 mil anos pra você ver!”, e de volta à caverna exortou seus companheiros a aprimorarem o processo evolutivo.
Desde então, o objetivo da evolução do homem foi o de proporcionar um par à altura para a mulher, para que, vendo o casal, ninguém dissesse que ela só saía com ele pelo dinheiro, ou para espantar assaltantes.
Se não fosse por aquele encontro fortuito em alguma planície do mundo primitivo, o homem ainda seria o mesmo troglodita desleixado e sem ambição, interessado apenas em caçar e catar seus piolhos, e um fracasso social.
Mas de onde veio a primeira mulher, já que podemos descartar tanto a evolução quanto as fantasias religiosas e mitológicas sobre a criação?
Inclino-me para a tese da origem extraterrena. A mulher viria (isto é pura especulação, claro) de outro planeta.
Venho observando-as durante anos - inclusive casei com uma, para poder estudá-las mais de perto - e julgo ter colecionado provas irrefutáveis de que elas não são deste mundo. Observei que elas não têm os mesmos instintos que nós, e volta e meia são surpreendidas em devaneio, como que captando ordens de outra galáxia, embora disfarcem e digam que só estavam pensando no jantar. Têm uma lógica completamente diferente da nossa. Ultimamente têm tentado dissimular sua peculiaridade, assumindo atitudes masculinas efazendo coisas - como dirigir grandes empresas e xingar a mãe do motorista ao lado - impensáveis há alguns anos, o que só aumenta a suspeita de que se trata de uma estratégia para camuflar nossas diferenças, que estavam começando a dar na vista.
Quando comentamos o fato, nos acusam de ser machistas, presos a preconceitos e incapazes de reconhecer seus direitos, ou então roçam a nossa nuca com o nariz, dizendo coisas como “ioink, ioink” que nos deixam arrepiados e sem argumentos.
Claramente combinaram isto. Estão sempre combinando maneiras novas de impedir que se descubra que são alienígenas e têm desígnios próprios para a nossa terra.
É o que fazem, quando vão, todas juntas, ao banheiro, sabendo que não podemos ir atrás para ouvir.
Muitas vezes, mesmo na nossa presença, falam uma linguagem incompreensível que só elas entendem, obviamente um código para transmitir instruções do Planeta Mãe.
E têm seus golpes baixos. Seus truques covardes. Seus olhos laser, claros ou profundamente escuros, suas bocas.
Meu Deus, algumas até sardas no nariz. Seus seios, aqueles mísseis inteligentes. Aquela curva suave da coxa, quando está chegando no quadril, e a Convenção de Genebra não vê isso!
E as armas químicas - perfumes, loções, cremes. São de uma civilização superior, o que podem nossos tacapes contra os seus exércitos de encantos?
Breve dominarão o mundo. Breve saberemos o que elas querem. Se depois de sair este artigo, eu for encontrado morto com sinais de ter sido carinhosamente asfixiado, como um sorriso, minha tese está certa. Se nada me acontecer, sinal de que a tese está certa, mas elas não temem mais o desmascaramento.
O que elas querem, afinal?
Se a mulher realmente veio ao mundo para inspirar o homem a melhorar e ser digno dela, pode ter chegado à conclusão de que falhou, que este velho guerreiro nunca tomará jeito. Continuaremos a ser mulheres com defeito, uma experiência menor num planeta inferior. O que sugere a possibilidade de que, assim como veio, a mulher está pronta a partir, desiludida conosco.
E se for isso que elas conspiram nos banheiros? A retirada? Seríamos abandonados à nossa própria estupidez. Elas levariam as suas filhas e nos deixariam com caras de Ugh.
Posso ver o fim da nossa espécie. Nossos melhores cientistas abandonando tudo e se dedicando a intermináveis testes com a costela, depois de desistir da mulher sintética. Tentando recriar a mágica da criação.
Uma mulher, qualquer mulher, de qualquer jeito! Prometemos que desta vez não as decepcionaremos! Uma mulher! Como é que se faz uma mulher?

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O arco


Que quer o anjo? Chamá-la
O que quer a alma? perder-se
Perder-se em rudes guianas
para jamais encontrar-se
Que quer a voz? encantá-lo.
Que quer o ouvido? Embeber-se
de gritos blasfematórios
até que dar aturdido.
Que quer a nuvem? raptá-lo,
Que quer o corpo? solver-se,
delir memória de vida
e quanto seja memória.
Que quer a paixão? detê-lo.
Que quer o peito? fechar-se
contra os poderes do mundo
para na treva fundir-se.
Que quer a canção? erguer-se
em arco sobre os abismos.
Que quer o homem? salvar-se,
ao permeio de uma canção.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Paisagem

Imagem em www.grendelart.carbonmade.com

Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areias as suas crinas.
Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elásticas e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.
Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.
Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exaltação afirmativa.
Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.

Sophia de Mello Breyner Andresen


segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Protopoema


Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e derepente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu corpo despido brilha debaixo do sol, entre o esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.
José Saramago