terça-feira, 30 de setembro de 2008

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugídias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E sei que um dia estarei mudo:
- mais nada.
Cecília Meireles

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A complicada arte de ver

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto.

"Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

Rubem Alves

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Silêncio


Diz-se o silêncio,
Não são precisas palavras,
Fala-nos por si e no meio de tanta gente,
Faz-nos sentir quanto é premente,
Vencer as barreiras que nos aporta o tempo...

Diz-se o silêncio,
Impõe-se, belisca-nos, agita-nos,
Porque nos mexe na alma e nos morde o corpo
Ao trazer até nós a premência, a urgência,
que nos impele o outro...

Diz-se o silêncio,
Ele é de ouro ou de prata,
Porque nos eleva,
Mesmo quando a saudade mata,
Sobe em nós a temperatura da consciência,
Ao penarmos pela ausência,
Mas sabemos que há uma memória que cura
e uma esperança que colmata...

Beatriz Barroso

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Poema de primavera

Metamorfose dos encantos
Encaixe dos sentimentos
Delicadezas se ondulam em flores
Nas asas da imaginação
Seu sorriso, meu disfarce
Me perco no equinócio do seu florescer
Num canto bem adubado do meu coração
Outra semente germina
Pulula em vida pós-inverno
De begônias e hortênsias
Ornando meu caminhar.
Quem hibernou, involuntário
Ao saltar para a primavera
Encontra suave brisa
A refrescar a tez acalorada febrilmente.
Enfim vitória de uma semente
É primavera chegando
A esperança renascendo
O colorido tingindo
O caminho do passante
Desencasula... para a vida
Desacrisola... para a maturidade
As forças da natureza me deixam em êxtase
Momento de recomeçar
Floreça em mim a primavera de minh'alma
As lágrimas transformem-se em suave brisa
Ou num orvalho manso a regar meu coração...
Estação das flores dentro de mim,
Reaja ao inverno sequioso dos sonhos meus
E brotem novos sonhos
Novas forças,
Nova vontade de sonhar.
Caminho lentamente, mas com firmeza
Esqueço o que doeu
Apago o traço da dor
Aborto a palavra saudade
Construo ruas de felicidade
Onde dançarei a dança da paz
Com o arco-iris a brincar
Ao vento vão os pensamentos
Novos sonhos, novos alentos
O tempo... ah, o tempo!
Meu íntimo confidente,
A primavera me trouxe.
Um dia novo está surgindo
Um sonho novo me envolve
Vida nova...
Saúde...
Paz...
Enfim...
A primavera me beija a face.
Alice Poltronieri

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Cultura...

"Cultura é tudo aquilo de que a gente se lembra

após ter esquecido o que leu. Revela-se no modo
de falar, de sentar-se, de comer, de ler um texto, de
olhar o mundo. É uma atitude que se aperfeiçoa
no contato com a arte.
Cultura não é aquilo que entra pelos olhos,
é o que modifica seu olhar."
José Paulo Paes

terça-feira, 23 de setembro de 2008

O meu olhar é nítido como um girassol


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender …

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar …
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…

Fernando Pessoa


segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Sou eu...

I
Se me escapa dos dedos a
carícia sem causa,
se me escapa dos dedos...
No vento ao passar...
A carícia que vaga sem
destino nem objeto,
a carícia perdida, quem a
irá encontrar...?
II
Eu pude amar esta noite
com piedade infinita,
pude amar ao primeiro que
dera certo chegar...
e nada chega. Está só...
minha mágoa aflita,
e a carícia perdida está
difícil de encontrar...
III
Se em teus olhos te beijam
esta noite meu anjo,
e estremece as ramas da
roseira, um doce suspirar...
Se te apertam os dedos uma
mão frágil e pequena,
que te toma e te deixa, que
está contigo sem estar...
IV
Se não vês essa mão, e nem
esta boca a te beijar,
Oh... meu anjo, que tens os
olhos fixos no céu...
Ahé apenas do ar que tens a
ilusão deste troféu,
vais saber que sou eu... daqui
de longe a te amar?..

Maria Antonieta R. Mattos


sábado, 20 de setembro de 2008

Um braço de mulher - Rubem Braga

Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que "nós não podemos descer!". O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora.

Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar. Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior eficiência na sua luta contra a morte.

Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora. Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem — "o senhor" — ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e co-piloto e vários homens no avião. Mas eu era o homem ao lado, o homem visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção.

Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo.

Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela se deixasse matar sem reagir.

A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim. Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida.

O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem.

Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do nevoeiro. Como a senhora não me desse mais trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e fraco assunto.

E de repente me veio a idéia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro - e de que eu podia morrer.
Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte.

Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre.

Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar; que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro.

A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer arrebentado e retorcido. A senhora estendeu o braço direito, segurando o encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.

Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a idéia da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça.

Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas. Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse afinal a tomar alguma providência.

Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no mundo.

No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa. "Ora, não senhor." Ele se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho - que devia permanecer um estranho.

Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.

Quando se retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Asas ao tempo


Queria ser um pássaro voando
Perdendo suas penas ao vento
Levaria em revoadas
Meus sonhos...
Daria, por eles, asas ao tempo...
E ficaria à espera
De que voltassem
Cantando ao regresso,
Trazendo, lá de cima
A paz e o encanto para meu ninho...
Teresa Cordioli

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A palavra dita

A palavra dita, dizem por aí, tem um poder daqueles. Já me aconselharam a não dizer as palavras como se elas fossem gangorras num parquinho, porque há uma seriedade pungente na palavra dita. Não dá pra tripudiar com ela, não!

A palavra dita brinca de pular amarelinha em abismos, por isso, melhor mesmo é dizer amor numa combinação inspirada de adjetivos bem docinhos, que é para não azedar a palavra que sai bailando com a voz.

A palavra na boca pode amargar mais do que se escrita em carta de despedida, por exemplo. Se quiser dar uma palavra dita de presente, por favor, esmere-se em saber se a palavra tem cabimento. Sugiro que a deixe ecoar, várias vezes, na sua cachola, antes de botar a boca no trombone.

A palavra dita benquerença vem sempre acompanha de fôlego para superar situações difíceis.

Quando dita, a palavra fome provoca um barulho bem alto no estômago e um buraco daqueles na alma. É um esvaziamento... Por isso, às vezes a gente fica mudo, sentado na sala, as luzes apagadas, e quase desaparece.

Palavra dita tem força pra atrapalhar as idéias da gente, basta ser inesperada e sincera. A palavra dita sincera tem perfume de arco-íris desembocando no lago, onde pessoas colocam suas esperanças de aprender a nadar e chegar a algum lugar onde faça sentido quem se é.

Não sou da palavra dita... Não sei entoá-la ao gosto do meu coração. Na verdade, estou na fase em que começo a dizer, mas emudeço. Então, faço uma careta, deixo pra lá, quem sabe mais tarde que tarde não há de chegar.

A palavra dita tristeza compõe sonatas com as lágrimas da gente.

Ando mais preguiçosa do que nunca para dizer a palavra, mas acho que é medo de gastar saliva e dizer palavra que ninguém está a fim de ouvir. E a palavra dita, quando ignorada, fica dolente de um jeito miúdo; e não dá pra saber por que dói e nem curar. Ela fica lá, batucando mágoas, plantada num jardim de inseguranças.

A palavra dita noite pode garantir um amanhecer tão alegre quanto é a cara do girassol.

Poderia dizer a palavra, mas teria de ser da que evapora... Uma palavra que ficasse no ar pra sempre como fosse lembrança. A palavra fragrância, ofertório. Gosto de engolir a palavra que, se dita, desampara o sonho do outro.

Queria dizer a palavra lamento, mas sem lamentar tê-la dito. Que ela fosse a porta aberta, fim da distância entre mim e os outros; que tivesse o poder de atrair, não de forjar solidões. E que provocasse alvoroço, desarrumação, inquietudes dignas de recomeços.

A palavra morte carrega com ela pontos finais e vestidos pretos.

A palavra dita tem passado, presente e futuro. Quando conjugada aos verbos, sai berrando necessidades. Mas acontece de outra palavra dita lhe fazer companhia e amansar suas urgências.

Palavra dita fragmentada é aquela que diz mais do que reza o dicionário.

Aos pares, a palavra dita fica mais feliz e dá a luz a frases. Dia desses, uma frase dessas coube direitinho dentro do momento e soprou um sorriso no olhar do moço triste de carteirinha. Ele não soube de onde veio, mas agarrou uma gargalhada num abraço e rabiscou um poema no ar.

A palavra sossego dá sono quando dita na beirada do fim da tarde de inverno.

Carla Dias

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Quando nasci...

"Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim"

Chico Buarque


terça-feira, 16 de setembro de 2008

A rua dos cataventos

Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!… E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!
Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons… acerta… desacerta…
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas…
Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço…
Pra que pensar? Também sou da paisagem…

Vago, solúvel no ar, fico sonhando…
E me transmuto… iriso-me… estremeço…
Nos leves dedos que me vão pintando.

Mário Quintana

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Bordados de mim

Sou assim...
Prosa e poesia
canto e lamento
alegria e solidão

rosa nascida na pedra
ave de asas cortadas
vulcão que ainda fumega
chuva em pleno verão

Sou assim...
Metáfora bordada
nos versos do poema
que o tempo não apaga

Sou, enfim,
bordados de mim.
Ariadna Garibaldi

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

A medida da vida

A gente sabe quando chegou a hora, quando não dá mais. No meu caso, é quando as meias se acumulam dentro dos sapatos. Sinal de que estou passando tempo demais fora de casa, sem tempo nem para lavar as meias enquanto tomo banho.

É nessa hora que a gente percebe que não fala com os pais há dias, que não liga para as pessoas queridas, que perdeu o enredo da vida dos amigos e, pior de tudo, que se extraviou de si mesmo.

Casa é o lugar onde a gente se encontra, onde a gente encontra tudo: a tesoura, o orégano, o livro. Casa é onde a gente anda de olhos fechados, de luz apagada. Casa é a cama sempre desfeita, sempre pronta para um descanso de costelas. Casa é o violão à mão, o tempo à inspiração.

Na falta da casa que é essa, pode-se brincar de casinha no meio do mundo — desde que haja silêncio. Se nós, humanos, praticássemos suficientemente o silêncio, chegaríamos, mais século, menos século, à telepatia. O silêncio é uma casa sem paredes.

As meias dentro do sapato fazem barulho. As cuecas sujas, irritadas, fazem barulho também. A mochila ainda não desfeita entra no desarranjo sonoro. O chuveiro elétrico grita friamente por um novo. Aquela canção incompleta, o vídeo não editado, o mapa astral não interpretado, o livro não revisado, o texto não escrito, o macarrão não cozinhado... tudo faz um barulho tremendo. Até o sono, atrasado, vira pesadelo.

A água transborda do copo desatento. A medida de todas as coisas perde a colherzinha certa. As coisas esquecem o tão necessário antes e depois, e viram coisa atrás de coisa que não se sabe como começou nem para onde foi. As coisas ficam sem história e viram manchetes —sensacionalistas — de jornal.

Dá vontade de virar bicho-do-mato. Porque diante de tanta coisa, de tanto ruído, ser bicho-do-mato é ser mais gente do que meia no sapato.

Eduardo Loureiro Jr.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Mergulho


Abro saídas na mata fechada
- densa floresta, rotas marcadas -
sol poente,
a inevitável escuridão que assusta.
Busco na meia-luz a claridade.
Tateio o véu indevassável
- labirinto obtuso -
ferimentos da alma dilacerada.
Cambaleio na margem
que se abriu na tormenta.
Lembro a pureza da nascente,
a esperança que me acompanhava.
Lavo o rosto amargurado e frio
nessa água pura, cristalina.
Perderam-se nas profundezas do rio
os reveses que sufocaram minha vida.


Flávio Villa-Lobos

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Como a lua

I
Olho a lua enquanto dormes...
Ela me assanha;
projetando luz em teus cabelos e;
indo em frente,
vai de teu semblante pelo pescoço,
lentamente,
e, iluminando teu dorso forte,
seu clarão banha...

II
Eu, em pé e recostada
no umbral de tua cabana...
Hoje rezo, choro e rogo,
sabendo inutilmente,
que o curso vagaroso
e feito pela lua refulgente,
eu não posso seguir...
Este amor me engana...

III
Mas me encorajo,
qual a lua silenciosa em teu leito...
Pé ante pé eu chego a tí...
Coração pulando no peito;
e como ela me aproximo,
vendo teu doce repousar...

IV
Como ela, sinto teu calor,
que não me deixa respirar...
O estalo indevido ocorre e me aprumo...
Não tem jeito;
saio do quarto como vim...
Você poderia acordar...

Maria Antonieta R. Mattos

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Miséria alheia

Poucos são os que se importam
Com a miséria que alastra
E muitos deles nem suportam
Quem na miséria se arrasta.
Se ao longe vêem um pedinte
Olham de um modo velado,
E passam para a rua seguinte
Só para não lhe passar ao lado.
Tentando fazer de conta
Que não se tinham apercebido,
Atitude que remonta
A um sentimento esquecido.
Talvez se já soubessem
O que custa passar fome,
E as dores que acontecem
A quem quer, mas que não come.
Não procedessem desta forma
E mudassem de atitude,
E criassem outra norma
Para que a miséria mude.
Talvez assim o mundo mudasse
Para um modo de altruísmo,
E a miséria acabasse
Assim como o egoísmo.
Zeninume

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Anoitecer

Vendo o vermelho desmaiar sobre o poente,

a noite abrir os braços em harmonia

vi estrelas cochicharem docilmente

sobre as tranças do riacho que corria...

Assim tão de repente!

Por baixo da pintura pretendia,

soltar seus corpos ausentes

em beijos sob a lua que dormia...

Abigail Brasil


sábado, 6 de setembro de 2008

A verdade - Luis Fernando Veríssimo

Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu seu anel de diamante ser levado pelas águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa que fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anel de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de margarida. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse:
- Agora me lembro, não era um homem, eram dois.
- E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse:
- Então está com o terceiro!
Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas não o mataram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revistaram e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para espanto dela.
- Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo e a deixou desfalecida - gritaram os aldeões. - Matem-no!
- Esperem! - gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo seu pescoço. - Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu!
E apontou para a donzela, diante do escândalo de todos.
O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel, dizendo "Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará o seu amor". E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra.
Todos se viraram contra a donzela e gritaram: "Rameira! Impura! Diaba!" e exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço.
Antes de morrer, a donzela disse para o pescador:
- A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?
O pescador deu de ombros e disse: - A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador.


quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Testamento


O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os…
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!… Não foi de jeito…
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde…
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

Manuel Bandeira


quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Flor de asfalto

Flor do asfalto, encantada flor de seda,
sugestão de um crepúsculo de outono,
de uma folha que cai, tonta de sono,
riscando a solidão de uma alameda...

Trazes nos olhos a melancolia
das longas perspectivas paralelas,
das avenidas outonais, daquelas
ruas cheias de folhas amarelas
sob um silêncio de tapeçaria...

Em tua voz nervosa tumultua
essa voz de folhagens desbotadas,
quando choram ao longo das calçadas,
simétricas, iguais e abandonadas,
as árvores tristíssimas da rua!

Flor da cidade, em teu perfume existe
qualquer coisa que lembra folhas mortas,
sombras de pôr-de-sol, árvores tortas,
pela rua calada em que recortas
tua silhueta extravagante e triste...

Flor de volúpia, flor de mocidade,
teu vulto, penetrante como um gume
passa e, passando como que resume
no olhar, na voz, no gesto e no perfume,
a vida singular desta cidade!

Guilherme de Almeida


terça-feira, 2 de setembro de 2008

Samba de benção

É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
Senão não se faz um samba, não
Senão é como amar uma mulher só linda; e daí?
Uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza
Qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado,
Uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher,
Feita apenas para amar, para sofrer pelo seu amor
E para ser só perdão
Fazer samba não é contar piada
Quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não...
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração

Vinícius de Moraes



segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Liberdade

Sou terra e fogo...
Sou ar e água...
Hoje ergo o cálice da liberdade...
E saúdo os guardiões da sabedoria...
Olho o horizonte e sigo...
Levo comigo toda a esperança...
E as memórias do passado...
Meu grito é livre...ecoa no ar...
E de pés descalço...
Eu bailo sozinha...
Contemplando a minha...
Liberdade...
Adeus Solidão!!!
Vania Staggemeier