terça-feira, 30 de junho de 2009

Deixei de ser aquele que esperava


Deixei de ser aquele que esperava,
Isto é, deixei de ser quem nunca fui…
Entre onda e onda a onda não se cava,
E tudo, em ser conjunto, dura e flui.


A seta treme, pois que, na ampla aljava,
O presente ao futuro cria e inclui.
Se os mares erguem sua fúria brava
É que a futura paz seu rastro obstrui.

Tudo depende do que não existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança, austero e triste.
Nada me explica. Nada me pertence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo dissipa e nada vence.

Fernando Pessoa

sábado, 27 de junho de 2009

Enxergo...


"Enxergo o que pode ser enxergado.
Quanto ao resto sou somente um cego
com os olhos abertos. Como todo mundo."

Inês Pedrosa

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Contrastes...


Saí sem rumo...
Fui por aí, sem pressa pra voltar...
Correndo,
Bem devagar...

Necessidade de caminhar,
Conhecer, viajar...

Avistei pelo caminho
muitas paisagens,
Rios,
Vales,
Jardins secretos...
E muita gente a sonhar...

Passei por lugares diversos,
Muros de concretos,
Castelos...
Outros nem tão belos
E vi muita gente pelas ruas,
À beira da estrada a chorar...

E depois de muito andar, apreendo as desigualdades
e sigo em frente, num mundo de contrastes tão evidentes,
onde os privilegiados estão a reclamar sem se importar
em seus carros blindados com seus bolsos abarrotados,

Enquanto outros tantos não tendo ao menos um teto
para se abrigar, buscam na fé e no impossível uma razão
para não deixarem de acreditar.

(Cláudia P. Martins)

terça-feira, 23 de junho de 2009

Coisas do inverno


E o inverno vai chegar
Como um sonho e perguntar
Da felicidade e partir
Não me importa se eu chorar
Vou ainda alcançar
Coisas do inverno
que estão perdidas
E verei, afinal, o meu povo cantar
Coisas que nem sonhei
Quem me dera sonhar
Livre no vento
repleto de cor
pisando o medo
reinventando o amor
Voando nas ruas
entrando no chão
Espalhando loucuras
criando ilusão
E verei, afinal, o meu povo cantar
Coisas que nem sonhei
Quem me dera sonhar

Renato Russo

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Um salto no escuro


Dou um salto no escuro,
No abstrato,
No desconhecido...

Me dispo de tudo que é real,
Não sei onde chegarei,
Mas lá me encontro...

Silêncio.....

Caindo como se mergulhasse
Dentro de mim mesma,
Estou em queda livre,
Já não me sinto...

Tudo são apenas sensações,
Lembranças remotas...
Parece tudo tão distante, tão surreal
...

Liberdade...

Medo do escuro...

Pairo um momento em suspensão...


O medo se desfaz...

Sinto de súbito como se algo mais forte me
puxasse violentamente para cima...

Abro os meus olhos, sinto-me novamente,
Mas minhas percepções são apenas sensoriais,
Sem nenhum pensamento...

Aos poucos tudo volta ao normal, e vejo, escuto e sinto tudo com mais clareza...

Estou viva...

Abro todas as janelas...

Sinto o sol batendo em meu rosto agora...

Como é bom estar viva...

Mas o salto às vezes se faz necessário...


(Cláudia P. Martins)

terça-feira, 16 de junho de 2009

Desesperança


Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo...

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo… O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado,
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra…

Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspeto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto…

- Ah, como dói viver quando falta a esperança!

Manuel Bandeira

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Realidade


Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorgeio de ninho...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho...
Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...
E a minha cabeleireira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho...
Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...
Tens sido vida afora o meu desejo
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei... se te perdi...

Florbela Espanca

terça-feira, 9 de junho de 2009

O homem; as viagens


O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.

Lua humanizada: tão igual à terra.
O homem chateia-se na lua.
Vamos para marte  — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro  — diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a vênus.
O homem põe o pé em vênus,
Vê o visto  — é isto?
Idem
Idem
Idem.
O homem funde a cuca se não for a júpiter
Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o sol, falso touro
Espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
Do solar a col-
Onizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.

Composição: Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Cocktail party

Imagem da Casa de Cultura Mário Quintana
Não tenho vergonha de dizer que estou triste,
Não dessa tristeza ignominiosa dos que, em vez de se matarem, fazem poemas:
Estou triste por que vocês são burros e feios
E não morrem nunca…
Minha alma assenta-se no cordão da calçada
E chora,
Olhando as poças barrentas que a chuva deixou.
Eu sigo adiante. Misturo-me a vocês. Acho vocês uns amores.
Na minha cara há um vasto sorriso pintado a vermelhão.
E trocamos brindes,
Acreditamos em tudo o que vem nos jornais.
Somos democratas e escravocratas.
Nossas almas? Sei lá!
Mas como são belos os filmes coloridos!
(Ainda mais os de assuntos bíblicos…)
Desce o crepúsculo
E, quando a primeira estrelinha ia refletir-se em todas as
poças d’água,
Acenderam-se de súbito os postes de iluminação!
Mário Quintana

terça-feira, 2 de junho de 2009

As lentas nuvens fazem sono


As lentas nuvens fazem sono,
O céu azul faz bom dormir.
Bóio, num íntimo abandono,
À tona de me não sentir.

E é suave, como um correr de água,
O sentir que não sou alguém,
Não sou capaz de peso ou mágoa.
Minha alma é aquilo que não tem.

Que bom, à margem do ribeiro
Saber que é ele que vai indo…
E só em sono eu vou primeiro.
E só em sonho eu vou seguindo.

Fernando Pessoa