sábado, 28 de fevereiro de 2009

Versões - Luis Fernando Veríssimo

Era uma vez uma donzela que caminhava pela beira de um rio quando ouviu um “psiu”. Era um sapo, que lhe contou que na verdade era um príncipe amaldiçoado, transformado em sapo por uma bruxa malvada com poderes mágicos. Se a donzela o beijasse, o sapo voltaria a ser príncipe. A donzela acreditou no sapo, beijou-o, ele se transformou de novo em príncipe e os dois se casaram e viveram felizes para sempre.

— & —

Anos depois outra donzela teve a mesma experiência. Ouviu a mesma história, sobre a maldição da bruxa que transformava qualquer coisa em outra coisa e fizera o príncipe virar sapo. A donzela concordou em beijar o sapo para livrá-lo da maldição, com uma condição:

— Beijo de língua, não.

E viveram felizes para sempre.

— & —

Muitos anos mais tarde, depois da Revolução Industrial, uma donzela desempregada caminhava pela beira do rio e ouviu a mesma história de um sapo. Concordou em beijá-lo, mas o sapo se transformou num príncipe muito feio, talvez devido à poluição do rio. A donzela protestou e ouviu do príncipe:
— Ué, pra quem já beijou sapo!

Mas casaram-se e tiveram uma vida difícil para sempre, porque o príncipe, inclusive, perdera tudo com o fim do feudalismo.

— & —

Já neste século, a mesma história. “Psiu”, sapo, bruxa com poderes mágicos, beijo, tudo igual. Com apenas um instante de hesitação até que se esclarecesse um ponto:

— Precisa ser donzela?

Não precisava. Casaram-se e viveram etc.

— & —

Anos sessenta. A mesma história, com uma variação: a moça era feminista. Ouviu o que a bruxa com poderes mágicos que transformava qualquer coisa em outra coisa fizera com o príncipe, e concluiu:

— Alguma você andou aprontando!

E solidarizou-se com a bruxa e chutou o sapo.

— & —

Jovem empresária caminhando pela beira do rio artificial do seu condomínio fechado ouve o “psiu”, depois a conversa do sapo, e – diante dos protestos do sapo – raciocina em voz alta:

— Um príncipe, hoje, não vale muita coisa. Mas imagina o que eu posso ganhar com um sapo falante, só em cachês!

E ela fez muito dinheiro e viveu feliz com o sapo numa gaiola para sempre.

— & —

Anteontem. Jovem ouviu a proposta do sapo, mas não decidiu em seguida. Procurou seu consultor financeiro, que lhe lembrou que nada é mais valioso no mercado, hoje, do que informação privilegiada como a que o sapo lhe passara.

E aconselhou:

— Esqueça o sapo e encontre essa bruxa!

Com seus poderes mágicos a bruxa poderia transformar moeda fraca em moeda forte, nominativas em preferenciais… Era a solução para a crise!

Fonte: Jornal “Zero Hora” nº. 15888, 23/2/2009.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O meu corpo transparente


A translucidez do meu corpo
revelará a pouca solidez da minha matéria?
Atravessam-me nuvens,
Atravessam-me pássaros,
Atravessam-me amores,
Rajadas fortes e ventos amenos.
Da invisibilidade do meu corpo
falará a minha vida, ou não.
Também da alegria, da tristeza, dos afetos.
Terei perdido os braços do abraço?
Terei perdido a boca do beijo?
Terei perdido consistência?
Onde anda a carne do meu corpo?
Quem me olhar, verá através de mim uma nuvem
carregada de chuva,

nuvens negras de borrasca,
mas também o sol a romper por entre elas.

Autor desconhecido



quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Na véspera


Na véspera de nada

Ninguém me visitou.

Olhei atento a estrada

Durante todo o dia

Mas ninguém vinha ou via,

Ninguém aqui chegou.

Mas talvez não chegar

Queira dizer que há

Outra estrada que achar,

Certa estrada que está,

Como quando da festa

Se esquece quem lá está.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Afinidade


A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil, delicado e penetrante dos sentimentos.
O mais independente.

Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades.
Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto em que foi interrompido.
Afinidade é não haver tempo mediando a vida.

É uma vitória do adivinhado sobre o real.
Do subjetivo sobre o objetivo.
Do permanente sobre o passageiro.
Do básico sobre o superficial.
Ter afinidade é muito raro.

Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.
Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois que as pessoas deixaram de estar juntas.
O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.

Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos fatos que impressionam, comovem ou mobilizam.
É ficar conversando sem trocar palavra.
É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento.

Afinidade é sentir com.
Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo.
Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.
É olhar e perceber.
É mais calar do que falar.
Ou quando é falar, jamais explicar, apenas afirmar.

Afinidade é jamais sentir por.
Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.
Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.
Compreende sem ocupar o lugar do outro.
Aceita para poder questionar.
Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.

A afinidade é singular, discreta e independente, porque não precisa do tempo para existir.
Vinte anos sem ver aquela pessoa com quem se estabeleceu o vínculo da afinidade!
No dia em que a vir de novo, você vai prosseguir a relação exatamente do ponto em que parou.
Afinidade é a adivinhação de essências não conhecidas nem pelas pessoas que as tem.

Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças, é conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas, quantos das impossibilidades vividas.

Afinidade é retomar a relação do ponto em que parou, sem lamentar o tempo da separação.
Porque tempo e separação nunca existiram.
Foram apenas a oportunidade dada (tirada) pela vida, para que a maturação comum pudesse se dar.
E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais, a expressão do outro sob a forma ampliada e refletida do eu individual aprimorado.

Arthur da Távola


terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

É assim a nossa vida na terra


É assim a nossa vida na terra
Como uma estrela da manhã,
uma bolha sobre a água
Uma gota de orvalho,
um relâmpago no céu de verão,
Um sonho neste mundo flutuante.

Sutra de Diamante

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Quem tiver olhos

Ah, esse nosso olho que vê o mundo mas não vê a si mesmo. E que ainda pensa que se vê quando se olha no espelho.

"O essencial é invisível aos olhos", escreveu certa vez o Exupéry. Por vezes, fechamos os olhos e enxergamos tudo. O ser é visível ao olhar. Mas o ser não se resume ao corpo, tampouco o olhar aos olhos.

Somos capazes de ver, ao vivo, o que acontece nos lugares mais distantes do mundo. Basta sentar em frente a uma televisão. Mas estamos desprovidos de aparelhos para o caso de querermos ver, também ao vivo, o que acontece no lugar mais íntimo do mundo: nosso próprio ser.

Uma amiga escritora falou que não sabia que profissão atribuir à personagem principal do novo livro que estava escrevendo. Eu brinquei com ela:— Qual a idade da personagem?— Cinquenta e poucos anos.— Com essa idade, acho que ela já é capaz de dizer pra você qual é a profissão dela, caso você pergunte.

O ser que sou possivelmente responderia a perguntas também, mas o ser que penso parece não estar muito interessado: prefere ficar imaginando a ter certeza.

Eu quero saber a minha cor, ou cores. Quero saber do meu movimento. Onde termino eu e onde começa o outro? Qual a cor, ou cores, dos outros?

Já imaginaram olhar para uma pessoa e ver os pensamentos dela? Ver fumacinha saindo da cabeça de uma pessoa que está com raiva mesmo se ela for uma mestra na arte de esconder o que sente? Testemunhar a luz fugindo do próprio corpo numa situação de medo?

As coisas estão acontecendo a todo momento e nós só vemos corpos e objetos. Perdemos os anjos que cruzam o céu — talvez até boiando de costas. Não damos pelos beijos que as pessoas trocam só com os olhares. Desperdiçamos os arabescos do vento. Quanta coisa sem ser vista!

Deve ser estranho, para os seres imateriais, passarem despercebidos. Quem me assegura que não há aqui, ao lado do computador, uma fadinha trocando de roupa — de luz — completamente despreocupada: "O Eduardo não está nem vendo mesmo."

Ah, nossas vidinhas privadas, escondidas. O banheirinho, a paredinha, a portinha, a chavinha, a roupinha, o corpinho. Somos crianças brincando de desaparecer debaixo de um lençol. Quem está além do lençol continua nos vendo, nós é que nos tornamos cegos para a presença deles.

Como sou cego de meus leitores! Que sei deles? Um pouco, quase nada, pelos comentários que fazem. Mas da maioria deles não conheço o buraco da fechadura da porta do corpo: o sorriso. E em que medida também me revelo? Será que minhas palavras não são apenas roupa barata, folha de parreira cobrindo as vergonhas?

O cego é, antes de tudo, cego de si mesmo. E cega os outros de si. Quem se arrisca ainda, feito namoradeira, a se pendurar nas janelas da alma, vendo e sendo visto? É divertido ver um grupinho pequeno preso dentro de uma casa monitorada por não sei quantas câmeras? Sim, é divertido. E não seria ainda mais divertido permitir que imagens de si se tornassem públicas? Que importaria se ela soubesse que a saudade em mim vai crescendo? E se ele soubesse que eu leio seu belo livro de poesias enquanto faço cocô? E se ela soubesse que me incomoda sua fala prolixa mas que, vez por outra, me dá vontade de calar sua boca com um beijo? E se ele soubesse que tenho ciúme de sua mulher e filho, e gostaria de tê-lo amigo dias sem fim? E se ela soubesse que o seu sorriso, embaixo de seu chapéu, salvou um dia que corria o risco de estar perdido? E se ele soubesse que eu desconfio que ele está apaixonado por mim? E se ela soubesse que é tão parecida com a mulher que amei um dia que eu gostaria muito de poder abraçá-la de vez em quando, sem nenhuma segunda intenção?

Ah, seria tanta luz que só fechando os olhos. E foi isso que fizemos: fechamos os olhos. Mas a luz que tiramos daqui continua lá, atrás do lençol dos olhos. E eu quero, eu quero, eu quero enxergar.

Eduardo Loureiro Jr.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Se for possível, manda-me dizer

Se for possível, manda-me dizer:

- É lua cheia. A casa está vazia -

Manda-me dizer, e o paraíso

Há de ficar mais perto e mais recente

Me há de parecer teu rosto incerto.

Manda-me buscar se tens o dia

Tão longo como a noite. Se é

Que sem mim só vês monotonia.

E se te lembras do brilho das marés

De alguns peixes rosados

Numas águas

E dos meus pés molhados, manda-me dizer:

- É lua nova -

E revestida de luz te volto a ver.

Hilda Hilst

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

As minhas asas


Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
— Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
— Veio a ambição, co'as grandezas,
Vinham para mas cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
— Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.
Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
— Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.

Almeida Garrett

(in Flores sem Fruto)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Ninguém escapa

Quando perguntam qual o livro de que mais gostei na vida, é uma sinuca. Deve haver uns 158 livros que eu gostaria de mencionar pelos motivos mais diversos, mas é preciso escolher um só. Uni-duni-tê: há 13 anos respondo que o livro da minha vida é “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. E gostei demais da versão que Fernando Meirelles levou pro cinema. Gostei mesmo.

Mas não é do filme que quero falar, e sim desse mundo patrulheiro em que estamos vivendo. Algumas associações de deficientes visuais (ao menos nos Estados Unidos) estão apelando pelo boicote ao filme, alegando que a obra passa uma imagem deturpada dos cegos, que não são pessoas tirânicas, depravadas ou com instintos animalescos de sobrevivência, como o filme leva a crer. Deus meu, será tão difícil de entender? O filme é sobre todos nós.

Dá um desânimo ver como algumas pessoas têm dificuldade em abstrair, em compreender metáforas ou em deixar de lado seu complexo de perseguição. Procuram com insistência alguma coisa que as faça se sentirem ofendidas. E encontram, lógico.

Outro dia um jornalista deu uma entrevista na tevê dizendo que o programa dos Trapalhões, hoje, seria líder em acusações de politicamente incorreto. Não duvido. Renato Aragão não tinha nenhum pudor em fazer piada sobre negros, gordos, gays, vegetarianos, loiras, publicitários, políticos ou qualquer outra tribo que rendesse piada – e todas rendem. Hoje ele colecionaria processos. É mais seguro ficar apresentando o Criança Esperança pro resto da vida.

Todas as pessoas devem ser cuidadosas, claro. Não há sentido em perpetuar preconceitos, mas uma terra de paladinos é muito xarope. Um mínimo de jogo de cintura deve ser preservado, senão ninguém mais poderá brincar, se divertir, fazer uma molecagem. Como é que vamos manter a leveza se a turma dos “magoados” não cessa de crescer? Outro dia escrevi sobre escolhas, disse que todos temos escolha, enfim, um assuntinho bobo, prosaico. Recebi um e-mail furioso: “Eu sou depressiva e não tenho escolha!” Ok, quem sofre de depressão tem dificuldade em escolher pela sociabilidade. Entendo. Mas, e agora? Como escrever sobre o incômodo de se perder um óculos de grau, se há mães que perderam filhos? Como escrever sobre a delícia de se caminhar ao ar livre se tem gente que nasceu sem perna, como escrever sobre vinhos se tem gente que nem água potável tem em casa? E nem pensar em elogiar o talento de Amy Winehouse, aquela drogada, devassa. Não importa que ela cante de forma magnífica, tem que ser pura e casta também. Assim como o professor de redação de uma escola carioca, que recentemente foi demitido porque descobriram que ele escrevia poemas eróticos num blog. Que horror! Professor tem que gastar suas horas livres escrevendo vovô viu a uva. Se é que isso não é suspeito também…

Na onda desse abacaxi chamado “politicamente correto”, muita gente acha que está salvando o mundo, quando está apenas defendendo sua própria tacanhice.


Martha Medeiros
Fonte: Jornal “Zero Hora” nº. 15759, 15/10/2008.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Canção do dia de sempre


“Tão bom viver dia a dia…
A vida assim, jamais cansa…

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu…

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência… esperança…

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…"

Mário Quintana

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Raças e cores


No Brasil, Senhor, não há raças
há cores, tonalidades
todos os matizes
numa hierarquia de cores, de classes
-preconceito, sim
(em casa, velado na rua)
segregação, nem tanto-
no processo de embranquecimento.


Raça, só dos animais inferiores.

Uma mestiçagem devoradora
-cruzamentos
até o infinito.

Uma nova etnia
fundindo ressentimentos
-da escravatura
-dos desterros
-das imigrações
em que se aprende
a dormir em rede
a despir-se
em que o dendê e a pimenta
não são mais privilégio de índios e africanos.

A luta é entre o arcaico
e o moderno,
entre o patriarcal
e o comunitário, porque,
negros, índios e mestiços
continuam pobres.



Antônio Miranda
Extraído da obra TERRA BRASILIS.