segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Ninguém escapa

Quando perguntam qual o livro de que mais gostei na vida, é uma sinuca. Deve haver uns 158 livros que eu gostaria de mencionar pelos motivos mais diversos, mas é preciso escolher um só. Uni-duni-tê: há 13 anos respondo que o livro da minha vida é “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. E gostei demais da versão que Fernando Meirelles levou pro cinema. Gostei mesmo.

Mas não é do filme que quero falar, e sim desse mundo patrulheiro em que estamos vivendo. Algumas associações de deficientes visuais (ao menos nos Estados Unidos) estão apelando pelo boicote ao filme, alegando que a obra passa uma imagem deturpada dos cegos, que não são pessoas tirânicas, depravadas ou com instintos animalescos de sobrevivência, como o filme leva a crer. Deus meu, será tão difícil de entender? O filme é sobre todos nós.

Dá um desânimo ver como algumas pessoas têm dificuldade em abstrair, em compreender metáforas ou em deixar de lado seu complexo de perseguição. Procuram com insistência alguma coisa que as faça se sentirem ofendidas. E encontram, lógico.

Outro dia um jornalista deu uma entrevista na tevê dizendo que o programa dos Trapalhões, hoje, seria líder em acusações de politicamente incorreto. Não duvido. Renato Aragão não tinha nenhum pudor em fazer piada sobre negros, gordos, gays, vegetarianos, loiras, publicitários, políticos ou qualquer outra tribo que rendesse piada – e todas rendem. Hoje ele colecionaria processos. É mais seguro ficar apresentando o Criança Esperança pro resto da vida.

Todas as pessoas devem ser cuidadosas, claro. Não há sentido em perpetuar preconceitos, mas uma terra de paladinos é muito xarope. Um mínimo de jogo de cintura deve ser preservado, senão ninguém mais poderá brincar, se divertir, fazer uma molecagem. Como é que vamos manter a leveza se a turma dos “magoados” não cessa de crescer? Outro dia escrevi sobre escolhas, disse que todos temos escolha, enfim, um assuntinho bobo, prosaico. Recebi um e-mail furioso: “Eu sou depressiva e não tenho escolha!” Ok, quem sofre de depressão tem dificuldade em escolher pela sociabilidade. Entendo. Mas, e agora? Como escrever sobre o incômodo de se perder um óculos de grau, se há mães que perderam filhos? Como escrever sobre a delícia de se caminhar ao ar livre se tem gente que nasceu sem perna, como escrever sobre vinhos se tem gente que nem água potável tem em casa? E nem pensar em elogiar o talento de Amy Winehouse, aquela drogada, devassa. Não importa que ela cante de forma magnífica, tem que ser pura e casta também. Assim como o professor de redação de uma escola carioca, que recentemente foi demitido porque descobriram que ele escrevia poemas eróticos num blog. Que horror! Professor tem que gastar suas horas livres escrevendo vovô viu a uva. Se é que isso não é suspeito também…

Na onda desse abacaxi chamado “politicamente correto”, muita gente acha que está salvando o mundo, quando está apenas defendendo sua própria tacanhice.


Martha Medeiros
Fonte: Jornal “Zero Hora” nº. 15759, 15/10/2008.