segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Quem tiver olhos

Ah, esse nosso olho que vê o mundo mas não vê a si mesmo. E que ainda pensa que se vê quando se olha no espelho.

"O essencial é invisível aos olhos", escreveu certa vez o Exupéry. Por vezes, fechamos os olhos e enxergamos tudo. O ser é visível ao olhar. Mas o ser não se resume ao corpo, tampouco o olhar aos olhos.

Somos capazes de ver, ao vivo, o que acontece nos lugares mais distantes do mundo. Basta sentar em frente a uma televisão. Mas estamos desprovidos de aparelhos para o caso de querermos ver, também ao vivo, o que acontece no lugar mais íntimo do mundo: nosso próprio ser.

Uma amiga escritora falou que não sabia que profissão atribuir à personagem principal do novo livro que estava escrevendo. Eu brinquei com ela:— Qual a idade da personagem?— Cinquenta e poucos anos.— Com essa idade, acho que ela já é capaz de dizer pra você qual é a profissão dela, caso você pergunte.

O ser que sou possivelmente responderia a perguntas também, mas o ser que penso parece não estar muito interessado: prefere ficar imaginando a ter certeza.

Eu quero saber a minha cor, ou cores. Quero saber do meu movimento. Onde termino eu e onde começa o outro? Qual a cor, ou cores, dos outros?

Já imaginaram olhar para uma pessoa e ver os pensamentos dela? Ver fumacinha saindo da cabeça de uma pessoa que está com raiva mesmo se ela for uma mestra na arte de esconder o que sente? Testemunhar a luz fugindo do próprio corpo numa situação de medo?

As coisas estão acontecendo a todo momento e nós só vemos corpos e objetos. Perdemos os anjos que cruzam o céu — talvez até boiando de costas. Não damos pelos beijos que as pessoas trocam só com os olhares. Desperdiçamos os arabescos do vento. Quanta coisa sem ser vista!

Deve ser estranho, para os seres imateriais, passarem despercebidos. Quem me assegura que não há aqui, ao lado do computador, uma fadinha trocando de roupa — de luz — completamente despreocupada: "O Eduardo não está nem vendo mesmo."

Ah, nossas vidinhas privadas, escondidas. O banheirinho, a paredinha, a portinha, a chavinha, a roupinha, o corpinho. Somos crianças brincando de desaparecer debaixo de um lençol. Quem está além do lençol continua nos vendo, nós é que nos tornamos cegos para a presença deles.

Como sou cego de meus leitores! Que sei deles? Um pouco, quase nada, pelos comentários que fazem. Mas da maioria deles não conheço o buraco da fechadura da porta do corpo: o sorriso. E em que medida também me revelo? Será que minhas palavras não são apenas roupa barata, folha de parreira cobrindo as vergonhas?

O cego é, antes de tudo, cego de si mesmo. E cega os outros de si. Quem se arrisca ainda, feito namoradeira, a se pendurar nas janelas da alma, vendo e sendo visto? É divertido ver um grupinho pequeno preso dentro de uma casa monitorada por não sei quantas câmeras? Sim, é divertido. E não seria ainda mais divertido permitir que imagens de si se tornassem públicas? Que importaria se ela soubesse que a saudade em mim vai crescendo? E se ele soubesse que eu leio seu belo livro de poesias enquanto faço cocô? E se ela soubesse que me incomoda sua fala prolixa mas que, vez por outra, me dá vontade de calar sua boca com um beijo? E se ele soubesse que tenho ciúme de sua mulher e filho, e gostaria de tê-lo amigo dias sem fim? E se ela soubesse que o seu sorriso, embaixo de seu chapéu, salvou um dia que corria o risco de estar perdido? E se ele soubesse que eu desconfio que ele está apaixonado por mim? E se ela soubesse que é tão parecida com a mulher que amei um dia que eu gostaria muito de poder abraçá-la de vez em quando, sem nenhuma segunda intenção?

Ah, seria tanta luz que só fechando os olhos. E foi isso que fizemos: fechamos os olhos. Mas a luz que tiramos daqui continua lá, atrás do lençol dos olhos. E eu quero, eu quero, eu quero enxergar.

Eduardo Loureiro Jr.