terça-feira, 30 de março de 2010

Poesia I


Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.

Vivida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.

Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento.
Como te chamas?
Tempo.

Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.

Hilda Hilst

quinta-feira, 25 de março de 2010

Nossa truculência


Quando penso na alegria voraz
com que comemos galinha ao molho pardo,
dou-me conta de nossa truculência.
Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,
tanto gosto delas vivas
mexendo o pescoço feio
e procurando minhocas.
Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?
Nunca.
Nós somos canibais,
é preciso não esquecer.
E respeitar a violência que temos.
E, quem sabe, não comêsssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue.
Minha falta de coragem de matar uma galinha
e no entanto comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.
A nossa vida é truculenta:
Nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.
E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.
Clarice Lispector


terça-feira, 23 de março de 2010

Saudades


Saudades! Sim... talvez... e porque não?
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor não nos importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
para mais doidamente me lembrar
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!

Florbela Espanca



sábado, 20 de março de 2010

O que diferencia uma pessoa...


"O que diferencia uma pessoa de outra é o seu imaginário,
a interpretação que dá aos fatos da vida."

Tizuka Yamasaki

sexta-feira, 19 de março de 2010

Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
Amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave
de rapina. Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede
infinita.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 16 de março de 2010

Depois é que é

"O bom macarrão não precisa ser ruim para quem lava a panela"
(Albir José da Silva)

O que me chamou a atenção pela primeira vez foi um simples - e até saboroso - macarrão.

Eu estava passando um final de semana com uns dez colegas da escola numa casa da praia.

Tinha dezessete anos e não sabia cozinhar um ovo. Propuseram que eu lavasse panelas e pratos. Achei justo. Eu só não esperava que o fundo da panela de macarrão viesse com uma crosta queimada de aproximadamente um dedo de expessura. Nos longos minutos daquela minha lavagem, eu decidi que aprenderia a cozinhar e que deixaria trabalhosos fundos de panela para os outros lavarem. Mas, passada a raiva, desisti da vingança e apenas coloquei em minha cabeça que sempre comeria, cozinharia ou faria qualquer outra coisa pensando no trabalho que aquilo daria não apenas durante, mas também depois.

Foi numa salinha do Theatro José de Alencar que aprendi que havia um nome para aquilo: pós produção. Foi dez anos depois do episódio do macarrão, e eu já nem me lembrava mais no meu propósito de pensar sempre no depois. Eu era um jovem sonhador, fazendo "quatrocentos mil projetos que jamais são alcançados." Eu queria fazer coisas - que quase nunca davam certo - e tinha que me preocupar, antes de mais nada, em viabilizar minhas ideias. O que fazer com o resultado delas ainda não era uma questão para mim. Mas quando a professora explicou o que era pós-produção, me voltou tudo à mente: todo o depois.

Os ditados populares sabem das coisas: "quem não pode com o pote não pegue na rodilha", "ajoelhou tem que rezar". O depois vem cobrar seu preço, não há nada sem consequencias. Sonhar e realizar é maravilhoso, mas depois é que é...

Tem também uma historiazinha zen em que o discípulo, ao final do jantar, pergunta ao mestre o que fazer para atingir a iluminação. O mestre pergunta: "Já terminou de comer?" O discípulo diz que sim. E o mestre complementa: "Então vá lavar o prato". Uma irônica bordoada de pós-produção.

Foi então que decidi ter uma vida simples - por vezes saborosa. Passei a evitar qualquer coisa que desse mais trabalho depois do que antes ou durante. Isso incluía crostas em panelas, manchas no chão e nos lençóis, imprevistos de viagens, juros de empréstimos, desvarios em paixões e qualquer coisa que terminasse com aquela frase batida do grilo falante interior: Agora aguente.

Com o tempo, meu grilo falante se converteu, ele mesmo, num monge budista em votos de silêncio. Não lhe dou mais motivos para tagarelar, afinal, "é melhor prevenir do que remediar." Ando leve, minha pisada quase sem rastros. Não entro de chinelas no banheiro para não misturar pó com água e ter de lavar o chão mais de uma vez por semana. Faço ovos cozidos para não enfrentar a gordura de uma frigideira. Guardo palavras ferozes e amargas para depois não ter de me arrepender e pedir desculpas por as haver dito.

Sei que tudo isso talvez esteja muito errado, que o certo talvez seja lambuzar-se, sujar-se, errar, ferir. Que o medo do depois pode anular o antes e, principalmente, o agora. Que temos mesmo é de lidar com nossas crostas, enfrentando-as com valentia. Que a tentativa de manter-se a salvo só pode resultar em isolamento, em manias, em idiossincrasias , numa pálida imagem das grandes potencialidades do ser humano. Pode ser, pode ser...

Pode ser que essa paz que eu desejo e busco, esse sabor que eu provo nas pequenas coisas simples, limpas e sem novidade, essa leveza que eu carrego sem que me pese coisa alguma, pode ser que tudo isso seja ilusão e que a realidade seja mesmo essa coisa atroz, voraz, de gritos, de luta, de estresse e de cansaço.

Confesso ser inacapaz de ser outra coisa nesse momento. Sou escravo de pensar que aquilo que eu sujo eu devo estar preparado para lavar, que aquilo que escolho deve estar preparado para aguentar, que aquilo que digo devo estar pereparado para assumir, e que, se outra pessoa o faz por mim, trata-se de uma gentileza, que eu jamais deveria tomar por outra coisa que não circunstancial, temporária, algo a ser agradecido, mas não repetido, muito menos esperado.

Hoje sei fazer meu próprio macarrão, até para duas ou três pessoas. E se alguém, agradecido, se oferecer para lavar a panela, resolverá tudo em dois ou três minutos sem esforço. Sei que é pouco, quase nada. Que há gente por aí fazendo coisas mais dignas e importantes: salvando vidas, construindo prédios. Que minha vida direcionada a um depois de baixo impacto é uma brincadeira de criança diante das questões dramáticas da humanidade. Não sou daqueles que vão se meter em destroços de inundações, terremotos e epidemias. Não sou o herói, não sou nem mesmo o homem, o humano.

Vida pequena é a minha. Vida de quem não mais acumula, mas se desfaz. Vida de quem vai chegando ao fim do ciclo e sabe que o resultado tem que ser zero, que não deve haver saldo, positivo ou negativo. Vida de quem pouco sonha porque pouco dorme. Vida de velho quase bebê. Vida sem dívida para pagar depois.

Eduardo Loureiro Jr.

sábado, 13 de março de 2010

A melhor maneira...

"A melhor maneira de nos prepararmos para o futuro
é concentrar toda imaginação e entusiasmo na execução
perfeita do trabalho de hoje."
Dale Carnegie

quinta-feira, 11 de março de 2010

Nenhum homem é uma ilha...


"Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti."
John Donne


terça-feira, 9 de março de 2010

Catástrofe

O meu esporte único é a Luta corpo a corpo

com o meu Anjo da Guarda.

Lutamos tanto pelo que queremos,

Que no final ficaremos redondamente mortos no chão,

Para maior alívio de Nosso Senhor,

Para sempre livre de nós dois!

Mário Quintana

sábado, 6 de março de 2010

A vida é...

"A vida é mais simples do que a gente pensa;
basta aceitar o impossível, dispensar o
indispensável e aceitar o intolerável."
Kathlenn Norris

quinta-feira, 4 de março de 2010

O jardim e a casa


Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes

Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 2 de março de 2010

O peixe


Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente,
Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.
Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a insconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.
O camponês, também, do nosso Estado,
Ante uma campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.
Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte!
Patativa do Assaré