(Albir José da Silva)
O que me chamou a atenção pela primeira vez foi um simples - e até saboroso - macarrão.
Eu estava passando um final de semana com uns dez colegas da escola numa casa da praia.
Tinha dezessete anos e não sabia cozinhar um ovo. Propuseram que eu lavasse panelas e pratos. Achei justo. Eu só não esperava que o fundo da panela de macarrão viesse com uma crosta queimada de aproximadamente um dedo de expessura. Nos longos minutos daquela minha lavagem, eu decidi que aprenderia a cozinhar e que deixaria trabalhosos fundos de panela para os outros lavarem. Mas, passada a raiva, desisti da vingança e apenas coloquei em minha cabeça que sempre comeria, cozinharia ou faria qualquer outra coisa pensando no trabalho que aquilo daria não apenas durante, mas também depois.
Foi numa salinha do Theatro José de Alencar que aprendi que havia um nome para aquilo: pós produção. Foi dez anos depois do episódio do macarrão, e eu já nem me lembrava mais no meu propósito de pensar sempre no depois. Eu era um jovem sonhador, fazendo "quatrocentos mil projetos que jamais são alcançados." Eu queria fazer coisas - que quase nunca davam certo - e tinha que me preocupar, antes de mais nada, em viabilizar minhas ideias. O que fazer com o resultado delas ainda não era uma questão para mim. Mas quando a professora explicou o que era pós-produção, me voltou tudo à mente: todo o depois.
Os ditados populares sabem das coisas: "quem não pode com o pote não pegue na rodilha", "ajoelhou tem que rezar". O depois vem cobrar seu preço, não há nada sem consequencias. Sonhar e realizar é maravilhoso, mas depois é que é...
Tem também uma historiazinha zen em que o discípulo, ao final do jantar, pergunta ao mestre o que fazer para atingir a iluminação. O mestre pergunta: "Já terminou de comer?" O discípulo diz que sim. E o mestre complementa: "Então vá lavar o prato". Uma irônica bordoada de pós-produção.
Foi então que decidi ter uma vida simples - por vezes saborosa. Passei a evitar qualquer coisa que desse mais trabalho depois do que antes ou durante. Isso incluía crostas em panelas, manchas no chão e nos lençóis, imprevistos de viagens, juros de empréstimos, desvarios em paixões e qualquer coisa que terminasse com aquela frase batida do grilo falante interior: Agora aguente.
Com o tempo, meu grilo falante se converteu, ele mesmo, num monge budista em votos de silêncio. Não lhe dou mais motivos para tagarelar, afinal, "é melhor prevenir do que remediar." Ando leve, minha pisada quase sem rastros. Não entro de chinelas no banheiro para não misturar pó com água e ter de lavar o chão mais de uma vez por semana. Faço ovos cozidos para não enfrentar a gordura de uma frigideira. Guardo palavras ferozes e amargas para depois não ter de me arrepender e pedir desculpas por as haver dito.
Sei que tudo isso talvez esteja muito errado, que o certo talvez seja lambuzar-se, sujar-se, errar, ferir. Que o medo do depois pode anular o antes e, principalmente, o agora. Que temos mesmo é de lidar com nossas crostas, enfrentando-as com valentia. Que a tentativa de manter-se a salvo só pode resultar em isolamento, em manias, em idiossincrasias , numa pálida imagem das grandes potencialidades do ser humano. Pode ser, pode ser...
Pode ser que essa paz que eu desejo e busco, esse sabor que eu provo nas pequenas coisas simples, limpas e sem novidade, essa leveza que eu carrego sem que me pese coisa alguma, pode ser que tudo isso seja ilusão e que a realidade seja mesmo essa coisa atroz, voraz, de gritos, de luta, de estresse e de cansaço.
Confesso ser inacapaz de ser outra coisa nesse momento. Sou escravo de pensar que aquilo que eu sujo eu devo estar preparado para lavar, que aquilo que escolho deve estar preparado para aguentar, que aquilo que digo devo estar pereparado para assumir, e que, se outra pessoa o faz por mim, trata-se de uma gentileza, que eu jamais deveria tomar por outra coisa que não circunstancial, temporária, algo a ser agradecido, mas não repetido, muito menos esperado.
Hoje sei fazer meu próprio macarrão, até para duas ou três pessoas. E se alguém, agradecido, se oferecer para lavar a panela, resolverá tudo em dois ou três minutos sem esforço. Sei que é pouco, quase nada. Que há gente por aí fazendo coisas mais dignas e importantes: salvando vidas, construindo prédios. Que minha vida direcionada a um depois de baixo impacto é uma brincadeira de criança diante das questões dramáticas da humanidade. Não sou daqueles que vão se meter em destroços de inundações, terremotos e epidemias. Não sou o herói, não sou nem mesmo o homem, o humano.
Vida pequena é a minha. Vida de quem não mais acumula, mas se desfaz. Vida de quem vai chegando ao fim do ciclo e sabe que o resultado tem que ser zero, que não deve haver saldo, positivo ou negativo. Vida de quem pouco sonha porque pouco dorme. Vida de velho quase bebê. Vida sem dívida para pagar depois.
Eduardo Loureiro Jr.