O número da sua senha era enorme e Manoel deduziu que mantinham uma numeração corrida, desde o primeiro morto. Mas só chamavam pelos três últimos algarismos. Enquanto não chamavam seu número, Manoel puxou conversa com o homem sentado ao seu lado. Que felizmente também era um morto brasileiro. Se apresentou:
- Manoel. Enfarte.
- Bira. Tiro.
- Você esperava isto aqui?
E Manoel fez um gesto que englobava toda a vida eterna.
- Pra dizer a verdade – disse Bira – pensei que eu fosse direto para o inferno.
- Acho que elas é que decidem pra onde a gente vai – disse Manoel, indicando as recepcionistas com a cabeça.
E, com efeito, quando voltou da sua entrevista com a recepcionista e cruzou com o Manoel, que fora chamado, Bira anunciou:
- Me deram uma chance. Purgatório. Duzentos anos.
- Parabéns!
A recepcionista era simpática. Digitou o nome de Manoel no computador e quando a sua ficha apareceu, exclamou:
- Ah, Brasil! Português?
- Português.
E o Português dela era perfeito. Fez várias perguntas para confirmar os dados sobre Manoel que tinha no computador. Sempre sorrindo. Mas o sorriso desapareceu de repente. Foi substituído por uma expressão de desapontamento.
- Ai, ai, ai... – disse a recepcionista.
- O que foi?
- Aqui onde diz “Religião” está: “nenhuma.”
- Pois é...
- O senhor não tem nenhuma religião? Pode ser qualquer uma. Nós encaminhamos para o céu correspondente. Ou, se o senhor preferir, reencarnação...
- Não, não...
- Então, sinto muito. Sua ficha é ótima, mas... Manoel a interrompeu:
- Não tem céu só para Ateu não?
Não existia um céu só para Ateus. Nem para agnósticos.
Também não eram permitidas conversões “pós-mortem.” E deixá-lo entrar no céu, numa eternidade em que nunca acreditara, o senhor Manoel teria que concordar, não seria justo para com os que sempre acreditaram. Infelizmente, ela tinha que...
- Espere! – disse Manoel, dando um tapa na testa. – Me lembrei agora. Eu sou Univitalista.
- O quê?
- Univitalista. É uma religião nova. Talvez por isso não esteja no computador.
- Em que vocês acreditam?
- Numa porção de coisas que eu não me lembro agora, mas a vida eterna é uma delas. Isso eu garanto. Pelo menos foi o que me disseram quando eu me inscrevi .
A recepcionista não parecia muito convencida mas pegou um livreto que mantinha ao lado do computador e foi direto na letra U. Não encontrou nenhuma religião com aquele nome.
- Ela é novíssima – explicou Manoel. – Ainda estava em teste.
A recepcionista sacudiu a cabeça mas disse que iria consultar o seu chefe.
Manoel deveria voltar ao seu lugar e esperar a decisão do chefe.
E Manoel voltou para o seu lugar, e desta vez o homem sentado ao seu lado é que puxou conversa. Abriu os braços e disse:
- Você acredita nisto?
- Eu...- começou a dizer Manoel, mas o outro não o deixou falar.
- É tudo encenação. É tudo truque. Eles tentam nos pegar até o último minuto.
- Por favor. Eu...
- Olha aí.
O homem tinha se levantado e chutado as nuvens que cobriam o chão da sala de espera.
Mas o Manoel saltou sobre o homem, cobriu sua cabeça com a camisola, atirou-o no chão e sentou-se em cima dele. Para ele ficar quieto e não estragar tudo afinal, mesmo que fosse só propaganda, era a vida eterna.
Luis Fernando Veríssimo