terça-feira, 18 de novembro de 2008

Anjos

"Não há remédio que cure o que a felicidade não cura"

27 de setembro. A cidade toma tons coloridos na paisagem e nas almas de seus habitantes. A alegria pode ser sentida pairando no ar, quebrando a aspereza e insensibilidade dos dias comuns. Nas ruas, as crianças passeiam, ostentando os seus chocolates e balas, cantarolando cirandas infantis. Elas passam abrindo sorrisos deliciosos e, entre brincadeiras, degustando a doçura da vida. Sua alegria contagiante transformava as casas e prédios num imenso arco-íris de luz, retirando o fel dos corações até daqueles que perderam o seu encanto com a impiedosa cavalgada do tempo.

No centro da monumental e antiga igreja, o animado padre cuidava dos últimos detalhes da decoração. As fitas de cetim em cores fortes davam movimento à escuridão e as flores perfumadas contrastavam com a seriedade do templo. Ao lado direito do altar, a meninada se assanhava. E como um grande batalhão, um a um dos integrantes do coral ia tomando a sua posição, repreendendo o nervosismo inevitável que antecedia a cantoria. Em pouco tempo, os fiéis já ocupavam os bancos da "Casa de Deus": a missa daquela quinta-feira seria muito especial. O coral cantava a todo o vapor os cânticos religiosos, alternando entre graves e agudos de infinita beleza, que logo ecoavam por toda a vizinhança.

A sábia senhora negra que a tudo assistia reparava nas crianças do coro: bochechas avermelhadas, cabelos e pele claros. Silenciosamente, ela engolia mais uma vez o desaforo que maltratava o seu coração. Curioso era, que a mesma igreja que pregava a igualdade entre os homens, constituía um coral unanimente ariano...

A magnitude das preces ia, minuto a minuto, esgotando-se. As atenções e os olhares começavam a se dispersar. A voz do pároco tornara-se cansativa e a missa começava a perder seu propósito. As pessoas alienavam-se da reza e mergulhavam suas cabeças em seus problemas pessoais; e o padre, agora, pronunciava palavras sem sentido.

Mas é 27 de setembro, é o dia de São Cosme e São Damião. Os santos das crianças, a única esperança para muitas. E em seu coral, ninguém era esquecido... Esse dia não poderia ser apenas mais um.

Dos bancos, as crianças olhavam encantadas os querubins pintados na parte superior da igreja, que brincavam no céu artificial. Os contornos barrocos enchiam de beleza o cenário dando traços generosos aos anjos que ganhavam vida. E tal como os meninos, eles quebravam a impaciência e indiferença das pessoas. No dia de São Cosme e São Damião, os anjos pareciam aproximar-se mais dos homens, a todos que os louvavam e pediam a sua proteção.

Contudo, outros anjos que habitam entre nós são esquecidos e sofrem com o descaso. Anjos, como o pequeno Ângelo, o subnutrido e mísero menino das periferias. Para ele, nem os doces de São Cosme e Damião tiravam a amargura da vida.

Desde que vira a mãe definhando lentamente, presa a uma cama pobre até a morte, resolveu não mais soltar a sua voz. E realmente, nunca mais pronunciou palavra alguma. À noite, amontoava-se aos quatro irmãos desencaminhados, no barraco de proporções ínfimas, localizado ao lado de um córrego que de tempos em tempos subia e fazia o anjo da morte baixar na Terra.

A luta pela sobrevivência era sua missão e a cada dia que se passava ele se deparava com monstros cada vez maiores. O silencioso menino carregava todas as manhãs a desgastada e suja caixa de engraxate, perambulando pelo centro da cidade, perto da antiga igreja. Por ali, os homens de negócio transitavam sempre, com seus ternos imponentes e sorrisos de aço. E lá ele ficava, esperando que algum deles se apiedasse de sua dor e deixasse que ele prestasse o simbólico serviço. Com certeza, eles cederiam uma migalha do pão velho de suas padarias.

Certa vez, Ângelo resolveu entrar na Catedral do centro da cidade e, admirando os querubins do teto, recebeu um presente dos céus. Uma linda mulher surgiu em frente a seus olhos e lhe ofereceu um ursinho de pelúcia, amarelo, perfumado, puro. Foi no mesmo dia em que o coral cantou como jamais se viu.

Agora, a vida do menino se corava. Uma felicidade gigantesca visitava seu coração depois de muito tempo de ausência. Ângelo esqueceu da dureza de sua caminhada e de volta ao pobre barraco, dormiu celestialmente, repleto da alegria que o singelo presente lhe dava.

Naquela noite, a magia se fazia presente. No mundo da fantasia, os querubins visitavam Ângelo, que com eles brincava e por eles era abençoado. Ele também podia voar junto aos anjos, passeando pelos campos de seus sonhos. A floresta virgem o chamava e junto com os querubins, ele se banhava em uma linda cachoeira, sorridente. Com seus frágeis membros, espalhava água para todos os lados, esbanjando a sua meninice, que um dia lhe fora roubada. Ali ele se sentia bem. O sofrimento morrera e a pobreza não existia.

Mas o nascer do sol põe fim à festa. O grito estridente e desesperado de um galo traz Ângelo de volta à realidade, arrancando-lhe da única coisa que a maldade e negligência dos homens não conseguiam lhe tirar: os sonhos. O cheiro de enxofre que a miséria produzia invadia os poros do nosso anjo. Um suspiro refletia a estrondosa insatisfação de ter voltado de sua viagem.

O sol da manhã já estava forte. Ângelo passa a mão na severa e inseparável caixa, olha para o seu ursinho, angelicalmente, e parte novamente para o seu martírio, no centro da cidade. Saía, entretanto, motivado. Porque ele sabia que a noite, como um manto, cairia sobre a frialdade de seus dias, e logo os anjos voltariam a estar bem do seu lado, levando-o do mundo das trevas para o retiro de seu amor.

Autor desconhecido