terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Que bicho eu sou?

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"Não sei por que sujeitam os introvertidos a tratamentos.
Só por não poderem ser chatos como os outros?"


Mário Quintana

Chego atrasado à reunião. Entro, a passos constrangidos, na sala. Estão reunidos num grande círculo. Meu atraso é obviamente percebido. A contragosto, cumprimento todos, com um vago bom-dia, e me sento. Então falam de quê? Um sujeito, barba e cabelos grisalhos, compara-se a um macaco. Antes que eu possa ordenar as ideias, os olhos da reunião voltam-se ameaçadoramente pra mim, perguntando que bicho eu sou.

Não achei muito elegante a pergunta. Isso lá é coisa que se pergunte assim, à primeira vista, a um honrado desconhecido? Balbuciei defesas, e a moça, que se proclamou facilitadora, não facilitou muito as coisas:

— Todos nós temos um animal oculto. Com qual você se identifica?

Pego de surpresa, não quis me comprometer. Disparei cachorro, bicho neutro, sem conexões freudianas perigosas (acho), nem lá nem cá, nem rei da selva nem fresco que nem o tamanduá.

Escolhas feitas, a facilitadora, conhecedora dos mistérios da alma humana, completou:

— Agora vem a parte mais importante. Cada um de vocês vai estar representando, aqui na frente, o animal escolhido.

Ai... Arrependimento. Nunca lati, nem nas mais secretas fantasias sexuais. E latido é coisa séria porque, se sair fraco, desafinado, compromete a honra do cidadão honesto. Tem que ser um latidão, forte e decidido. Sinceramente, eu não estava com vontade de latir, quanto mais em público. Ai, meu Deus, por que não escolhi o bicho-preguiça, tão simpático, tão na dele, alheio ao mal-estar mundial?

Eu quis mudar, mas a dona não deixou. Disse que isso ia ao encontro das regras. Pensei em ponderar que então não haveria problema, mas desisti.

Fiz uma piada, dizendo que era um cão mudo, mas ninguém riu. A situação piorou visivelmente. Latir depois de uma piada fracassada é suprema humilhação. Pensei em simular um desmaio, mas, naquela altura, ficaria falso, acho.

Entre o latido e o desmaio, fiquei com o primeiro, e lati sem convicção. Qualquer vira-lata de bom coração, se me visse naquela ocasião, haveria de se solidarizar comigo, com meu latido vagabundo.

Voltei, com o rabo entre as pernas, pra cadeira, feito cão sem dono.

Minha vida de cão triste não demorou muito, pois a facilitadora atacou:

— Agora vocês vão estar me dizendo o que passou pela cabeça de vocês. Só assim descobrimos o verdadeiro eu.

Ela, tão engraçada, quis começar comigo, a facilitadora do inferno. Ah!, me esquece... Vai procurar javali, vai namorar elefante, que diabo! Essas coisas, eu só pensei. Disse, na verdade, outra. Falei que foi uma experiência única. Que coisa espantosa!, exclamei. Me conectei com camadas submersas do ser. Ao latir, senti aflorar meu lado selvagem, deixei vir à tona capas de agressividade reprimidas no disfarce do dia-a-dia. Porque a sociedade...

Ah, os olhos dela brilharam de satisfação:

— Sim, sim, é isso mesmo, é isso aí!

Ah, sou outro, reconheço. Obrigado, obrigado. Que Deus guarde, em bom lugar, as facilitadoras, facilitando-lhes o caminho. Para bem longe, quem sabe...

Felipe B. Netto