sábado, 21 de março de 2009

História do caminhão - Capítulo II

Conforme disse, me vi cheio de dinheiro, que o Ministro da Fazenda me mandou levar em casa em um caminhão. Se o leitor espera que eu explique como e por que o governo me mandou esse dinheiro, perde seu tempo; houve murmúrios segundo os quais houvera um engano de endereço, e as notas se destinariam a um cavalheiro que iria financiar a safra de amendoim e a candidatura de Brederodes. Creio que fizeram mais dinheiro para ele, evitando assim o escândalo e o trabalho de passar sobre o meu cadáver para, reaver o que me haviam entregue.

O fato é que, tendo adquirido o Jornal do Brasil de domingo, comecei a anotar alguns anúncios, e na segunda-feira me pus a empregar o capital. Comprei inicialmente dois galos de prata e uma caricatura artística de Rui Barbosa, em bronze, uma arca de jacarandá, uma colcha de vicunha e uma grande peça de renda do Norte com labirinto; tudo velhas aspirações. A seguir adquiri um rádio, pegando o mundo inteiro, “inclusive Portugal", uma arara vermelha e azul, um “macaco barrigudo, macho, delicado e que manso" e “uma linda canarinha pronta para juntar", segundo rezava o “anúncio”, e se lia em seus olhos cheios de ansiedade romântica.

Contratei, também, uma senhora moça que se oferecia “de boa apresentação, desembaraçada, falando idiomas”. Quando estou aborrecido, mando colocá-la numa poltrona em um canto da sala, e dizer várias coisas cm inglês, francês e alemão, com todo o desembaraço. Jamais me preocupei em saber o que ela diz, mas suponho que sejam coisas agradáveis. Como ela às vezes fala um pouco alto, nós vamos para outra sala e fechamos a porta, deixando-lhe ordem de falar durante meia hora. Aquela voz de mulher falando línguas importantes dá um certo tom distinto ao nosso lar. Um anúncio extremamente tentador me levou a comprar um motor trifásico. Achei bom ter um motor trifásico. Às vezes mando ligá-lo para obrigar a senhora desembaraçada a falar ainda um pouco mais alto. O ruído do motor trifásico combinado com a voz da senhora parece que excita a canarinha, que se põe a cantar.

Como o macaco barrigudo, apesar de ser realmente manso e delicado, me parecia um pouco triste, comprei um lustre com pingente de Versalhes, por 12 contos, verdadeira pechincha; ele agora está mais contente, e também gosta muito de brincar com os galos de prata e a renda de labirinto.

Depois de um certo tempo notei que a senhora moça de fina educação, boa apresentação e desembaraçada parecia estar ficando, por sua vez, um pouco triste, e se punha horas na janela olhando o mar. Chegou até a murmurar coisas em português, o que me desgostou. Português nós todos falamos aqui em casa, principalmente minha mulher. Sempre tive vontade de comprar um binóculo de marinha, para umas navegações que pensei em fazer na juventude. Comprei um, excelente, e o dei de presente à senhora, para que olhe o mar com mais eficiência. Ela me agradeceu com um sorriso e teve a bondade de murmurar algumas palavras, creio que em baixo alemão. Gostei tanto que mandei que repetisse aquilo durante o jantar, de dois em dois minutos. Cada vez que ela o fazia, minha mulher ficava um instante de garfo no ar, os olhos sonhadores, e demonstrava uma grande admiração - ela, que a princípio, implicava com a boa senhora, talvez por causa de sua boa apresentação, e de seu desembaraço. - Como fala bem essa língua! - comentava minha mulher. - Deve ser ótimo falar em língua estrangeira! É tão bonito! As pessoas não entendem, mas é realmente muito bonito. Fale um pouquinho mais, sim?

Mandamos colocar lá fora uma placa avisando que em nossa casa on parle babla spricht spoke, e não sei mais o que em vários idiomas. Nossa vizinha criticou muito isso, mas está morrendo de inveja, pois tudo o que se ouve em sua casa é português, e assim mesmo com um sotaque paraibano que é uma tristeza.

Diariamente continuo a comprar coisas, tais como um acordeon com 80 baixos e um contrabaixo de 4 cordas. Sempre tive vontade de tocar um desses instrumentos, mas tenho o ouvido péssimo e jamais consegui aprender nada de música. Quando eu era pobre me conformava com isso. Agora toco o acordeon e o contrabaixo à vontade, e com toda força. Minha mulher a princípio pareceu ficar meio irritada; ela também passou a vida humilhada por não saber tocar coisa alguma. Fiz-lhe uma delicada surpresa, adquirindo um piano de cauda Pleyel, em segunda mão mas em perfeito estado, por 17 contos. À tarde, depois do jantar, ela martela o piano e eu dou duro no contrabaixo; a arara grita esporadicamente, o macaco se mete dentro da arca de jacarandá e a caricatura artística em bronze de Rui Barbosa faz uma cara de quem está estourando de dor de cabeça. Mas é um bom exercício, e nos lava a alma, e à noite dormimos muito melhor.

Minha mulher, que é muito piedosa, disse há tempos que eu devia gastar algum dinheiro em obras de benemerência. Achei que ela estava com razão, pois sempre tive ligeiras tendências marxistas, e acho que os ricos devem ficar um pouco menos ricos para que os pobres fiquem um pouco menos pobres, aliás, sem exagero. Assim sendo, e como o governo houvesse fechado os cassinos, fundei a “Sociedade Protetora das Girls". Comecei protegendo duas, e tudo corria muito bem quando minha mulher sugeriu, com certa violência, que era melhor aplicar a verba em menores abandonados. Argumentei que uma das girls era menor, e a outra, se não o era, o fora muito recentemente; e ambas estavam abandonadas; e quem sabe, meu Deus, o que lhes poderia acontecer lançadas ao abandono com aqueles corpos tão lindos e aquelas almas tão frágeis - mas tão frágeis! Que o que: minha “Sociedade Protetora" teve de ser fechada. Agora só funciona na ilegalidade; pois mesmo em segredo gosto de praticar a caridade, o que aliás penso que tem mais merecimento; e como é bom!

Aqui, para tristeza do leitor, encerro esta magnífica história, e se pensam que vou contar outra, muito se enganam, pois agora tenho mais o que fazer - e o tempo já me é pouco para fazer o Bem.

Texto extraído do livro:
200 crônicas escolhidas. Rubem Braga. Editora Record,

Rio de Janeiro. 1998.