sexta-feira, 20 de março de 2009

História do caminhão - Rubem Braga

CAPÍTULO I

Quando parou à minha porta o enorme caminhão fechado, com soldados de fuzil na mão, e um deles me perguntou: “é aqui?" - eu suspirei e disse que sim. Já fui preso várias vezes; não há de ser por mais uma que perderei minha natural dignidade.

Tratei de apanhar a escova de dentes, a pequena, frívola e patética escova de dentes que anda sempre na bolsa das senhoras desonestas e no bolso dos políticos perseguidos. E dispondo também de dois maços de cigarro, esperei impávido, embora chateado. Só então notei que o caminhão era do Ministério da Fazenda. Funcionários desembarcavam fardos, e começaram a colocá-los na saleta da frente. Isso não me agradou. Indiquei-lhes a entrada de serviço e ordenei que colocassem os fardos no quartinho da empregada. É, com vergonha o digo, um quartinho minúsculo onde uma pessoa não pode respirar com muita força que esgota completamente o ar. Em pouco tempo ele estava literalmente cheio de pacotes. Um suboficial aproximou-se de mim respeitosamente:

- Está entregue? Respondi secamente: - Pode retirar-se. O caminhão partiu. Voltei então ao livro que começara a ler, e que era um desses romances introspectivos tão profundos que a gente dorme e cai num estado de catalepsia; de maneira que esqueci o incidente.

Só pela noite, tendo chegado de uma fila onde se metera de madrugada, a empregada reclamou, e veio me tomar satisfações, como costumam fazer as empregadas modernas. Respondi-lhe que aquilo devia ser alguma ideia de minha mulher, que de vez em quando tem uma. Não desejo criticá-la; é uma senhora que tem seus encantos, mas depois de 25 anos de casado estou imunizado contra qualquer crise de desespero.

Se me aparecer em casa, embrulhado em papel colorido, um faquir vivo com uma trombeta na mão e uma lagartixa pendurada em cada orelha pela cauda, eu o recebo de boa cara, pois imagino que deve ser alguma ideia de minha mulher, e ela sem falta me provará que aquilo é excelente para espantar o homem que vem cobrar a prestação do sofá; que, com o dinheiro assim economizado, poderemos comprar quem sabe uma piteira de marfim, igual àquela que lhe presenteei quando éramos noivos e que ela perdeu num piquenique.

Ela é assim, minha mulher, prática e romântica; acostumei-me; e, afinal de contas, não tenho outra.

Quando descobri que os fardos continham notas de mil cruzeiros, logo percebi que houvera um engano. Que fazer? O governo anda confuso com muitos problemas e, sempre que não sabe o que fazer, faz dinheiro, que afinal de contas é uma coisa de que todo mundo gosta. Os oposicionistas sistemáticos ficam irritados e passam a metade do dia falando em inflação, dizendo que há dinheiro demais; e a outra metade do dia passa cavando o dinheiro, com certeza porque acham que é de menos que o possuem. Pensei em procurar o ministro da Fazenda e contar-lhe a história; mas com toda certeza o ministro não me receberia porque os ministros estão sempre muito ocupados em receber pessoas, e por causa disso jamais recebem quem quer que seja.

A mulher, chegando em casa, opinou que o melhor era eu ir à Polícia; mas não creio que fique bem a um homem honrado ir à Polícia por causa de negócios de dinheiro. Acabei, enfim, me conformando com o fato. “Pobre sim, honrado nunca” - dizia meu padrinho, que tinha esse lema e graças a ele morreu rico e foi enterrado com as maiores honrarias, com direito a prefeito e bispo. Lembrei-me disso, e também de que meu lar é humilde, como a maior parte dos lares do Brasil, e desde que casamos minha mulher está sempre querendo comprar umas coisas que jamais compramos. Nunca o fizemos por falta de dinheiro - pois digam o que disserem sobre inflação, em minha casa sempre reinou uma grande deflação. Só os sonhos inflavam dentro de nós; mas ultimamente, para falar a verdade, até eles andavam murchos. Sonhar cansa, como qualquer outra coisa; e com a velhice nós, pobres, já que não podemos economizar dinheiro, passamos a economizar ambições.

Já que eu estava com dinheiro, o papel era comprar coisas. Coisas as, tudo artigo estrangeiro, coisas de metal, luzidias, práticas, elegantes, elétricas, tipo de pós-guerra. Lembrei-me do tempo em que eu passava os domingos a ler o Jornal Brasil e a vontade que tinha de fazer mil e um negócios ali anunciados. Resolvi esperar até o domingo e comprar o jornal nesse dia, estava pululando de ofertas maravilhosas. Foi o que fiz; esperei o domingo. Leitor tenha um pouco de paciência e espere também até a próxima postagem para se embasbacar com o desenvolvimento desta agradável história.