quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Gentileza


“Eu aprendi que ser gentil é mais importante do que estar certo” – Shakespeare

Fico pensando em como deve estar desgostoso o senhor José Datrino, lá do céu. Ele, que ficou famoso como Profeta Gentileza e foi o propagador da filosofia "gentileza gera gentileza" ,deve estar tendo dificuldade em encontrar os frutos das sementes que plantou. Porque, gente, reconheçamos, ser gentil está mais démodé do que usar pochette.


E eu, graças a Deus, estou por fora, pois acho gentileza o máximo. Não abro mão de desejar feliz aniversário a ninguém - e levo tão a sério que sei de cor as datas de aniversário de todas as pessoas das minhas relações; faço o impossível para comparecer sempre que me convidam (e se não posso ir, nunca deixo de me justificar); não deixo ninguém esperando; não saio discordando só para causar polêmica; respeito os horários dos outros; não deixo ninguém mudar de planos por minha causa; sempre falo "bom dia", "boa tarde", "boa noite" e "muito obrigada" (faço questão do "muito"); só me recuso a fazer um favor para alguém se realmente não estiver ao meu alcance (e nesse caso eu tento indicar quem possa fazer); sempre retorno as ligações; sempre respondo aos e-mails; e jamais me dirijo a alguém adotando um tom autoritário. E aí você pode estar pensando: "vantagem nenhuma, você não faz mais que sua obrigação". Exatamente, eu também acho. Isso é o básico, o arroz com feijão que sustenta esse detalhe que faz toda a diferença para que tenhamos uma vida melhor: a gentileza. E o que me desespera é perceber que nem do arroz com feijão as pessoas estão dando conta. As pessoas querem estar certas, querem mostrar o quanto são poderosas, o quanto são inteligentes. As pessoas querem cumprir metas, mostrar o quanto são competentes, o quanto são esforçadas. As pessoas querem ficar ricas, mostrar o quanto são espertas, o quanto são melhores que os outros. E quanto a ser gentil? As pessoas não se preocupam com isso ou, sendo otimista, se esqueceram desse detalhe - nem foi por mal - devido à falta de tempo.


E quando falo "as pessoas", me incluo também já que, embora eu faça meu arroz com feijão, vivo mordendo a isca dos sem-educação e grosseiros de todos os tipos. Não raramente me vejo gastando energia num embate com alguém que tenha me tratado sem o mínimo de gentileza. O que ganho com isso? Nada. Apenas a frustração por não ter conseguido ser gentil, mesmo com aquela pessoa que não merecia. Porque o que eu entendo é que a gentileza que gera gentileza é aquela indiscriminada. É ser gentil sem olhar a quem. Do resto, a vida se encarrega.


Como aconteceu com meu pai, há cerca de dois anos. Numa madrugada de chuva torrencial, indo de carro de Belo Horizonte a Juiz de Fora, ele parou na estrada ao ver uma ambulância estacionada no acostamento. Perguntou ao motorista o que estava acontecendo e este lhe explicou que o veículo tinha estragado, ele precisava seguir viagem e não sabia o que fazer. Meu pai, então, desceu do carro. Deu uma olhada no motor da ambulância e, como viu que não poderia fazer nada, levou o motorista até a cidade onde ele deveria chegar e o ajudou a encontrar um mecânico que pudesse voltar com eles até a ambulância. Três meses depois, passando pela mesma estrada, meu pai sofreu um acidente gravíssimo. Foi levado para a Santa Casa de uma cidade próxima e, devido ao estado em que se encontrava, só poderia ser transferido para um hospital em Belo Horizonte de ambulância. Porém, de acordo com as normas esdrúxulas da Santa Casa em questão, uma ambulância deveria se deslocar de BH até a tal cidade para buscá-lo. Possibilidade inviável, logicamente. A viagem demora cerca de duas horas e meia, o que significa que levaria, no mínimo, cinco horas para que meu pai fosse atendido num hospital daqui. E assim teria sido se um motorista da Santa Casa não tivesse entrado no ambulatório e visto meu pai na maca. Tratava-se exatamente do mesmo motorista que meu pai havia socorrido meses antes. Ele peitou seu próprio chefe e todo o hospital. "Esse cara me ajudou um dia e eu vou levá-lo agora, e de qualquer jeito", ele disse. E trouxe.


Meu pai ficou um mês internado mas sobreviveu porque foi atendido a tempo pelo melhor hospital que temos em Belo Horizonte. O que poderia não ter acontecido se, naquela madrugada chuvosa, ele não tivesse marcado a resposta certa no teste que a vida lhe aplicou. Desde então, fiquei mais vigilante às respostas que eu dou aos testes que a vida me aplica e sei que só existe uma resposta certa: gentileza.

 Fernanda Pinho