O poeta é um fingidor.Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dorA dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,Na dor lida sentem bem,Não as duas que ele teve,Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de rodaGira, a entreter a razão,Esse comboio de cordaQue se chama coração.
Nesta vida, em que sou meu sono,Não sou meu dono,Quem sou é quem me ignoro e viveAtravés desta névoa que sou euTodas as vidas que eu outrora tive,Numa só vida.Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,Mas minha cor vem do meu alto céu,E só me encontro quando de mim fujo.
Quem quando eu era infante me guiavaSenão a vera alma que em mim estava?Atada pelos braços corporais,Não podia ser mais.Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimentoTambém, aos olhos de quem bem olhasseA Presença Real sob disfarceDa minha alma presente sem intento.
Pousa um momento,Um só momento em mim,Não só o olhar, também o pensamento.Que a vida tenha fimNesse momento!
No olhar a alma tambémOlhando-me, e eu a verTudo quanto de ti teu olhar tem.A ver até esquecerQue tu és tu também.Só tua alma sem tuSó o teu pensamentoE eu onde, alma sem eu. Tudo o que souFicou com o momentoE o momento parou.Fernando Pessoa